sexta-feira , 15 novembro , 2024

Artigo | ‘Relíquia’ é um dos melhores terrores psicológicos que você provavelmente não conhece

O gênero do terror costuma estar acompanhado por certos estigmas que vêm despontando em suas narrativas desde sempre. De um lado, temos o pesadelo adolescente que toma forma nas construções slasher, como Pânico’ e Sexta-Feira 13′ – não tirando a grandiosidade e o legado das produções, mas sim deixando claro a repetição que tais histórias sofreram com o passar dos anos; de outro lado, temos as incursões mais psicológicas, que normalmente se valem de metáforas bem construídas para transformar uma simples investida em algo mais profundo e que leve o público a refletir, como O Babadook’ e até mesmo o involuntário clichê de Quando as Luzes se Apagam’. De qualquer forma, o abuso de tramas e arquiteturas parecidas costuma deixar o terror em mais uma das esferas artísticas que sofre com a mesmice – sendo bastante difícil encontrar uma obra que fuja do convencional.

Felizmente, Relíquia não sofre desse mal. A estreia de Natalie Erika James nas telonas a colocou no centro dos holofotes, seguindo os passos de conterrâneos como Ari Aster e Robert Eggers, que também causaram um grande barulho quando surgiram na indústria audiovisual. A simples premissa de um thriller psicológico é conduzido com maestria através de alegorias sobre etarismo, capacitismo, legado e relações familiares, girando em torno de uma família que sofre de um mal incurável. Apesar de certas convulsões – incluindo certas sequências que talvez não tenham sido trabalhadas com a cautela necessária -, o resultado final é de tirar o fôlego e certamente coloca o longa-metragem na lista dos melhores do ano (ainda mais numa época em que precisamos dessas joias cênicas no nossos catálogo).



A história é centrada em três mulheres da mesma família que pertencem a gerações diferentes – e, quando a matriarca Edna (Robyn Nevin) simplesmente desaparece sem deixar rastros para trás, cabe à filha Kay (Emily Mortimer) e à neta Sam (Bella Heathcote) procurarem por ela em sua isolada casa no meio de uma floresta. Auxiliadas por certos amigos, as duas descobrem que os segredos de Edna são bem mais terríveis do que se espera – e que as duas podem estar sendo atraídas para uma armadilha mortal. É claro que, no geral, já vimos esse tipo de incursão; entretanto, James possui uma visão bem clara do que deseja entregar e corrobora ao lado de uma impecável equipe criativa para que cada frame seja pincelado com inflexões quase plásticas, moldando-se em meio a uma força aterrorizante que se apodera da casa.

A verdade é que o longa não é para todos: há uma certa convergências com tantas transgressões intimistas que dominaram o cinema nos últimos anos, como A Bruxa’ e ‘Hereditário’, que prezam mais pela sinestesia do que pelos jump scares. Assim como as obras supracitadas, Relíquia é uma homenagem comedida para as artes performáticas e cria um universo engendrado com arquiteturas tensas e arrepiantes. Percebe-se que reviravoltas não existem e, quando notamos a beleza e os aforismos das mensagens subliminares, esses twists não são necessários: diferente da solidez formulaica de vários terrores que foram lançados na década passada, o foco aqui restringe-se basicamente à direção de arte, à direção de fotografia e às atuações.

Mortimer e Heathcote dividem as cenas com química magistral, já fornecendo os primeiros vislumbres do confronto de gerações entre Kay, que tenta se reconectar com a filha e se afastar das “maluquices” da própria mãe, e Sam, que, por sua vez, tenta se reconectar com a avó e evitar o comportamento invasivo da mãe. O ciclo etário é, de fato, o que alimenta as engrenagens – e o que fornece a complexidade de amor e ódio que o público sente pelas personagens. Suas personalidades escancaram como nos sentimos com as gerações mais velhas e mais novas, enquanto cultiva um fértil terreno que não funciona com a ausência de uma ou de outra. Enquanto a narrativa é centrada no desaparecimento de Edna, ela retorna mais cedo do que o esperado e se mostra como uma mulher marcada por traumas que ainda irão se desenrolar.

Confesso que, quando primeiro li a sinopse do filme, pensei que a trama seria guiada por um jogo de gato-e-rato e talvez inclinações para quebra-cabeças divertidos, ainda que datados. Porém, tive uma surpresa bastante agradável quando percebi que estava sendo arrastado para uma narcótica e viciante experiência que caminhava para além de minhas expectativas: o roteiro, escrito numa colaboração entre James e Christian White, se baseia em eventos cotidianos que podem ser vistos em literalmente qualquer família – brigas, momentos de doçura, confronto paternal (com exceção do teor sobrenatural que os rondam). Conforme é-nos revelado um certo background tanto da história da casa quanto das personagens principais, percebemos que essa íntima interação é problemática ao extremo, sendo refletida no uso de uma sóbria paleta de cores e de um filtro esverdeado que se torna cada vez mais escuro.

No final das contas, as simbologias temáticas ganham força em sequências que nos deixam à beira de um ataque de nervos e a uma resolução fora do usual, em que Kay finalmente compreende com o que está lidando – com o envelhecimento de sua mãe do qual não há escapatória. E, em um emblemático e evocativo desfecho, ela própria será alvo do que encarava com repulsa.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Felizmente, Relíquia não sofre desse mal. A estreia de Natalie Erika James nas telonas a colocou no centro dos holofotes, seguindo os passos de conterrâneos como Ari Aster e Robert Eggers, que também causaram um grande barulho quando surgiram na indústria audiovisual. A simples premissa de um thriller psicológico é conduzido com maestria através de alegorias sobre etarismo, capacitismo, legado e relações familiares, girando em torno de uma família que sofre de um mal incurável. Apesar de certas convulsões – incluindo certas sequências que talvez não tenham sido trabalhadas com a cautela necessária -, o resultado final é de tirar o fôlego e certamente coloca o longa-metragem na lista dos melhores do ano (ainda mais numa época em que precisamos dessas joias cênicas no nossos catálogo).

A história é centrada em três mulheres da mesma família que pertencem a gerações diferentes – e, quando a matriarca Edna (Robyn Nevin) simplesmente desaparece sem deixar rastros para trás, cabe à filha Kay (Emily Mortimer) e à neta Sam (Bella Heathcote) procurarem por ela em sua isolada casa no meio de uma floresta. Auxiliadas por certos amigos, as duas descobrem que os segredos de Edna são bem mais terríveis do que se espera – e que as duas podem estar sendo atraídas para uma armadilha mortal. É claro que, no geral, já vimos esse tipo de incursão; entretanto, James possui uma visão bem clara do que deseja entregar e corrobora ao lado de uma impecável equipe criativa para que cada frame seja pincelado com inflexões quase plásticas, moldando-se em meio a uma força aterrorizante que se apodera da casa.

A verdade é que o longa não é para todos: há uma certa convergências com tantas transgressões intimistas que dominaram o cinema nos últimos anos, como A Bruxa’ e ‘Hereditário’, que prezam mais pela sinestesia do que pelos jump scares. Assim como as obras supracitadas, Relíquia é uma homenagem comedida para as artes performáticas e cria um universo engendrado com arquiteturas tensas e arrepiantes. Percebe-se que reviravoltas não existem e, quando notamos a beleza e os aforismos das mensagens subliminares, esses twists não são necessários: diferente da solidez formulaica de vários terrores que foram lançados na década passada, o foco aqui restringe-se basicamente à direção de arte, à direção de fotografia e às atuações.

Mortimer e Heathcote dividem as cenas com química magistral, já fornecendo os primeiros vislumbres do confronto de gerações entre Kay, que tenta se reconectar com a filha e se afastar das “maluquices” da própria mãe, e Sam, que, por sua vez, tenta se reconectar com a avó e evitar o comportamento invasivo da mãe. O ciclo etário é, de fato, o que alimenta as engrenagens – e o que fornece a complexidade de amor e ódio que o público sente pelas personagens. Suas personalidades escancaram como nos sentimos com as gerações mais velhas e mais novas, enquanto cultiva um fértil terreno que não funciona com a ausência de uma ou de outra. Enquanto a narrativa é centrada no desaparecimento de Edna, ela retorna mais cedo do que o esperado e se mostra como uma mulher marcada por traumas que ainda irão se desenrolar.

Confesso que, quando primeiro li a sinopse do filme, pensei que a trama seria guiada por um jogo de gato-e-rato e talvez inclinações para quebra-cabeças divertidos, ainda que datados. Porém, tive uma surpresa bastante agradável quando percebi que estava sendo arrastado para uma narcótica e viciante experiência que caminhava para além de minhas expectativas: o roteiro, escrito numa colaboração entre James e Christian White, se baseia em eventos cotidianos que podem ser vistos em literalmente qualquer família – brigas, momentos de doçura, confronto paternal (com exceção do teor sobrenatural que os rondam). Conforme é-nos revelado um certo background tanto da história da casa quanto das personagens principais, percebemos que essa íntima interação é problemática ao extremo, sendo refletida no uso de uma sóbria paleta de cores e de um filtro esverdeado que se torna cada vez mais escuro.

No final das contas, as simbologias temáticas ganham força em sequências que nos deixam à beira de um ataque de nervos e a uma resolução fora do usual, em que Kay finalmente compreende com o que está lidando – com o envelhecimento de sua mãe do qual não há escapatória. E, em um emblemático e evocativo desfecho, ela própria será alvo do que encarava com repulsa.

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