domingo , 17 novembro , 2024

Artigo | ‘Réquiem para um Sonho’ e a decadência humana pela visão de Darren Aronofsky

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Há um ramo da psicologia que estuda as inerências psicossomáticas do ser humano – e dentre elas está o tão perigoso e inexplicável desejo. A sensação de querer algo acompanha os indivíduos desde o momento de seu nascimento, seja pelas necessidades mais primitivas de sobrevivência como a fome, e se torna cada vez mais complexa à medida em que o estágio de amadurecimento vai completando seu ciclo. O problema é quando esse desejo em potencial se torna cada vez mais viciante, levando as pessoas a fazerem o que for possível para ver o que imaginam se tornar realidade – e é exatamente dessa queda no abismo das inconsequências que trata o segundo longa-metragem de Darren Aronofsky, Réquiem para um Sonho’.

O filme gira em torno de quatro personagens principais – Sara (Ellen Burstyn), seu filho Harry (Jared Leto), Marion (Jennifer Connelly) e Tyrone (Marlon Wayans) – cada qual com seu próprio arco narrativo que, eventualmente, sucumbe aos efeitos do vício. E veja aqui que não me refiro apenas aos vícios mais óbvios, mas principalmente ao fator psicológico que nos induz a buscar plenitude e conforto em bens materiais. Já nas primeiras sequências, percebemos que “equilíbrio” não é um adjetivo que veremos com frequência dentro desse microcosmos idealizado pelo cineasta – afinal, o início do primeiro ato já demonstra ser um tanto quanto afrontoso em relação à narrativa: durante uma breve discussão entre mãe e filho, a tela se divide em duas, fornecendo a característica principal da montagem narrativa, mas de uma forma original, mostrando ao mesmo tempo o que os dois personagens em foco estão fazendo, unindo-os em uma mesma atmosfera ao mesmo tempo que os separa em seus próprios mundos em crescente ruína.



Sara se tranca em seu quarto ao saber que o filho irá levar seu único jeito de escapar a realidade em que vive – a televisão de sua casa -, dizendo para si mesma que tudo vai ficar bem. Enquanto isso, Harry não compreende o vício da mãe, entrando em constante contradição ao vender o aparelho para alimentar o seu próprio e poder, assim, também escapar do que vive. A divisão entre luz e sombra, lucidez e loucura – e outros temas paradoxais também – mostra-se constante em toda a narrativa, atingindo níveis absurdos conforme os atos se aproximam do final.

A divisão de Réquiem’ segue um padrão visualmente compreensível, mas com metáforas que vão para além da diegese cênica: os três atos carregam consigo os nomes das estações do ano – e a gratuidade dos subtítulos não existe. Cada uma delas conversa diretamente com o estado de espírito dos personagens, e a primeira, intitulada Verão, discorre sobre o sonho de cada um. Sara deseja aparecer em seu programa de televisão favorito, enquanto Harry quer se tornar um homem de negócios bem-sucedido. Marion, sua namorada, aspira à posição de uma designer de roupas, lançando sua própria linha, e Tyrone apenas visa a um futuro pacífico com tudo ao que tem direito. É interessante seguirmos as linhas narrativas separadamente e analisar como elas encontram um fim drástico e assustadoramente coincidente, negando a premissa de um “final feliz” após a queda dos protagonistas.

O roteiro, também assinado por Aronofsky, não se preocupa em romantizar os efeitos do vício em sua obra, colocando suas criações em círculos inquebrantáveis e cada vez mais claustrofóbicos. A associação mais ferrenha com a sociedade em que vivemos é do trio de jovens que embarca no perigoso mundo do narcotráfico para bancar tanto suas “viagens alucinógenas” quanto seus sonhos. A química entre Connelly, Leto e Wayans é absolutamente necessária para fortalecer os laços de sua parceira e para indicar com nenhum conseguiu se salvar das consequências impetuosas – incluindo um crescente mergulho em suas próprias consciências e medos. Tudo isso é combinado mais uma vez com um ritmo de execução angustiante, cuja sensação de aprisionamento e impotência é causado pela repetição de atos (como a ingestão da droga pelos personagens em diversos momentos), pelo fast-cutting (técnica de corte acelerada) e pelo enquadramento em big-close, assegurando o intimismo da história.

Não deixe de assistir:

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Além dos recursos visuais, o longa tem uma base de construção sonora imprescindível para o incômodo do espectador. Composto por Clint Mansell, a faixa Lux Aeterna” (Luz Eterna) pode ser encarada como uma ironia, visto que seu conceito de “luz” entra em choque com a escuridão dos desfechos dos protagonistas, cada qual sem saída dentro de um túnel de solidão, fraqueza e loucura. A aceitação aqui é a pior possível, visto que só vem após momentos de puro sofrimento e sacrifícios inimagináveis – sanidade, pureza, liberdade e amor-próprio. A composição tétrica desenrola-se desde a primeira parte, combinada com alguns tons de pop e electro para dialogar com uma atmosfera mais calma, apenas para se adensar nos dois últimos atos.

Outono, como foi nomeada o segundo momento do filme, brinca com seu correspondente em inglês, Fall (que significa “queda”, também). O ritmo frenético parece tomar grande parte das sequências, causando uma sensação de desconforto quase insuportável e nos colocando na mesma situação que os protagonistas. Enquanto o círculo a se desenvolver ao redor de Harry, Tyrone e Marion segue caminhos tortuosos, é Sara quem rouba o foco: após ser chamada para participar do programa no qual sonhou entrar, ela percebe que precisa emagrecer simplesmente para entrar num lindo vestido vermelho e se sentir deslumbrante, negando a sensação de solidão e abandono que a acompanhou num passado recente. Desse modo, ela passa a tomar pílulas que controlem seu desejo por comida e deixa-se levar pela sensação de alívio – a qual infelizmente e muito em breve a transforma numa carcaça ambulante e movida por uma hiperatividade assustadora.

A transformação de Burstyn em cena é a mais chocante. Ela atravessa todo um caminho de auto-aceitação às avessas, sendo influenciada pela medicina moderna e por caminhos alternativos para uma saúde corporal que não faz nada além de mostrar os efeitos drásticos do placebo e do charlatanismo. Ela é praticamente uma cobaia de uma rede de drogas que insiste em buscar pelos mais fracos de mente para lhes fornecer breves momentos de mudança, cujas consequências são irreversíveis. Quando chegamos em Inverno, estação que premedita uma conotação mais negativa, os sonhos de todos já foram por água abaixo, e Sara é a que mais sofre, justamente por acabar sem ninguém, atada a uma cama e presa num hospital psiquiátrico para se desintoxicar.

A crueza parece ser o recurso imagético preferido de Aronofsky. Além da completa ruína dos personagens, a constante presença do olho dilatado, seja claro, seja através de metáforas, conversa com a simbologia da “janela da alma”. Durante as sequências de uso das drogas, os olhos dos personagens adquirem uma profundidade negra que os deixa vazios e à mercê daquilo que ingerem, retirando-os da condição de seres pensantes e colocando-os num patamar de manipulação constante. Em meados do segundo ato, temos um frame que mostra Harry e Marion deitados, cabeça a cabeça, formando a pupila e a íris, enquanto as fotos de referência para coleção de moda nunca produzida da garota formam o restante do globo ocular; tudo isso, combinado à paleta azulada, conversa sobre a inebriante e efêmera serenidade dentro da qual eles se encontram – e que está prestes a acabar (vide foto de capa).

O momento de mais impacto é, sem sombra de dúvida, o final do último ato, mais precisamente as quatro pequenas sequências que mostram o fim de cada um dos personagens. Através de um plongée absoluto, Aronofsky realiza um retorno às raízes, mostrando de forma delicada Sara, Harry, Marion e Tyrone encolhendo-se em seus leitos em posição fetal, fazendo-os voltar para o momento em que tudo era realmente um sonho – seu nascimento e sua infância. Em outras palavras, as preces para o atendimento dos seus desejos nunca foram atendidas, deixando uma atmosfera de pesar e pena que perdura até mesmo depois dos créditos

‘Réquiem para um Sonho’ não é um filme fácil, simples ou agradável de se ver. Negando a ideia de superação e de redenção – arcos vistos em filmes do gênero -, o conceito geral da obra é mostrar a dificuldade e a tendência do ser humano em fazer escolhas erradas que as permitirão alcançar o que querem de uma forma mais rápida. A sensação que permanece logo após seu fim é a de reflexão, intimista e social, sobre se estamos ou não fazendo a mesma coisa que os personagens – e se a nossa ruína estará tão próxima assim também.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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O filme gira em torno de quatro personagens principais – Sara (Ellen Burstyn), seu filho Harry (Jared Leto), Marion (Jennifer Connelly) e Tyrone (Marlon Wayans) – cada qual com seu próprio arco narrativo que, eventualmente, sucumbe aos efeitos do vício. E veja aqui que não me refiro apenas aos vícios mais óbvios, mas principalmente ao fator psicológico que nos induz a buscar plenitude e conforto em bens materiais. Já nas primeiras sequências, percebemos que “equilíbrio” não é um adjetivo que veremos com frequência dentro desse microcosmos idealizado pelo cineasta – afinal, o início do primeiro ato já demonstra ser um tanto quanto afrontoso em relação à narrativa: durante uma breve discussão entre mãe e filho, a tela se divide em duas, fornecendo a característica principal da montagem narrativa, mas de uma forma original, mostrando ao mesmo tempo o que os dois personagens em foco estão fazendo, unindo-os em uma mesma atmosfera ao mesmo tempo que os separa em seus próprios mundos em crescente ruína.

Sara se tranca em seu quarto ao saber que o filho irá levar seu único jeito de escapar a realidade em que vive – a televisão de sua casa -, dizendo para si mesma que tudo vai ficar bem. Enquanto isso, Harry não compreende o vício da mãe, entrando em constante contradição ao vender o aparelho para alimentar o seu próprio e poder, assim, também escapar do que vive. A divisão entre luz e sombra, lucidez e loucura – e outros temas paradoxais também – mostra-se constante em toda a narrativa, atingindo níveis absurdos conforme os atos se aproximam do final.

A divisão de Réquiem’ segue um padrão visualmente compreensível, mas com metáforas que vão para além da diegese cênica: os três atos carregam consigo os nomes das estações do ano – e a gratuidade dos subtítulos não existe. Cada uma delas conversa diretamente com o estado de espírito dos personagens, e a primeira, intitulada Verão, discorre sobre o sonho de cada um. Sara deseja aparecer em seu programa de televisão favorito, enquanto Harry quer se tornar um homem de negócios bem-sucedido. Marion, sua namorada, aspira à posição de uma designer de roupas, lançando sua própria linha, e Tyrone apenas visa a um futuro pacífico com tudo ao que tem direito. É interessante seguirmos as linhas narrativas separadamente e analisar como elas encontram um fim drástico e assustadoramente coincidente, negando a premissa de um “final feliz” após a queda dos protagonistas.

O roteiro, também assinado por Aronofsky, não se preocupa em romantizar os efeitos do vício em sua obra, colocando suas criações em círculos inquebrantáveis e cada vez mais claustrofóbicos. A associação mais ferrenha com a sociedade em que vivemos é do trio de jovens que embarca no perigoso mundo do narcotráfico para bancar tanto suas “viagens alucinógenas” quanto seus sonhos. A química entre Connelly, Leto e Wayans é absolutamente necessária para fortalecer os laços de sua parceira e para indicar com nenhum conseguiu se salvar das consequências impetuosas – incluindo um crescente mergulho em suas próprias consciências e medos. Tudo isso é combinado mais uma vez com um ritmo de execução angustiante, cuja sensação de aprisionamento e impotência é causado pela repetição de atos (como a ingestão da droga pelos personagens em diversos momentos), pelo fast-cutting (técnica de corte acelerada) e pelo enquadramento em big-close, assegurando o intimismo da história.

Além dos recursos visuais, o longa tem uma base de construção sonora imprescindível para o incômodo do espectador. Composto por Clint Mansell, a faixa Lux Aeterna” (Luz Eterna) pode ser encarada como uma ironia, visto que seu conceito de “luz” entra em choque com a escuridão dos desfechos dos protagonistas, cada qual sem saída dentro de um túnel de solidão, fraqueza e loucura. A aceitação aqui é a pior possível, visto que só vem após momentos de puro sofrimento e sacrifícios inimagináveis – sanidade, pureza, liberdade e amor-próprio. A composição tétrica desenrola-se desde a primeira parte, combinada com alguns tons de pop e electro para dialogar com uma atmosfera mais calma, apenas para se adensar nos dois últimos atos.

Outono, como foi nomeada o segundo momento do filme, brinca com seu correspondente em inglês, Fall (que significa “queda”, também). O ritmo frenético parece tomar grande parte das sequências, causando uma sensação de desconforto quase insuportável e nos colocando na mesma situação que os protagonistas. Enquanto o círculo a se desenvolver ao redor de Harry, Tyrone e Marion segue caminhos tortuosos, é Sara quem rouba o foco: após ser chamada para participar do programa no qual sonhou entrar, ela percebe que precisa emagrecer simplesmente para entrar num lindo vestido vermelho e se sentir deslumbrante, negando a sensação de solidão e abandono que a acompanhou num passado recente. Desse modo, ela passa a tomar pílulas que controlem seu desejo por comida e deixa-se levar pela sensação de alívio – a qual infelizmente e muito em breve a transforma numa carcaça ambulante e movida por uma hiperatividade assustadora.

A transformação de Burstyn em cena é a mais chocante. Ela atravessa todo um caminho de auto-aceitação às avessas, sendo influenciada pela medicina moderna e por caminhos alternativos para uma saúde corporal que não faz nada além de mostrar os efeitos drásticos do placebo e do charlatanismo. Ela é praticamente uma cobaia de uma rede de drogas que insiste em buscar pelos mais fracos de mente para lhes fornecer breves momentos de mudança, cujas consequências são irreversíveis. Quando chegamos em Inverno, estação que premedita uma conotação mais negativa, os sonhos de todos já foram por água abaixo, e Sara é a que mais sofre, justamente por acabar sem ninguém, atada a uma cama e presa num hospital psiquiátrico para se desintoxicar.

A crueza parece ser o recurso imagético preferido de Aronofsky. Além da completa ruína dos personagens, a constante presença do olho dilatado, seja claro, seja através de metáforas, conversa com a simbologia da “janela da alma”. Durante as sequências de uso das drogas, os olhos dos personagens adquirem uma profundidade negra que os deixa vazios e à mercê daquilo que ingerem, retirando-os da condição de seres pensantes e colocando-os num patamar de manipulação constante. Em meados do segundo ato, temos um frame que mostra Harry e Marion deitados, cabeça a cabeça, formando a pupila e a íris, enquanto as fotos de referência para coleção de moda nunca produzida da garota formam o restante do globo ocular; tudo isso, combinado à paleta azulada, conversa sobre a inebriante e efêmera serenidade dentro da qual eles se encontram – e que está prestes a acabar (vide foto de capa).

O momento de mais impacto é, sem sombra de dúvida, o final do último ato, mais precisamente as quatro pequenas sequências que mostram o fim de cada um dos personagens. Através de um plongée absoluto, Aronofsky realiza um retorno às raízes, mostrando de forma delicada Sara, Harry, Marion e Tyrone encolhendo-se em seus leitos em posição fetal, fazendo-os voltar para o momento em que tudo era realmente um sonho – seu nascimento e sua infância. Em outras palavras, as preces para o atendimento dos seus desejos nunca foram atendidas, deixando uma atmosfera de pesar e pena que perdura até mesmo depois dos créditos

‘Réquiem para um Sonho’ não é um filme fácil, simples ou agradável de se ver. Negando a ideia de superação e de redenção – arcos vistos em filmes do gênero -, o conceito geral da obra é mostrar a dificuldade e a tendência do ser humano em fazer escolhas erradas que as permitirão alcançar o que querem de uma forma mais rápida. A sensação que permanece logo após seu fim é a de reflexão, intimista e social, sobre se estamos ou não fazendo a mesma coisa que os personagens – e se a nossa ruína estará tão próxima assim também.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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