É um fato dizer que a boa comédia é algo difícil de ser alcançado. Sua simplicidade e sua sutileza são, em grande parte, confundidas com a canastrice, a falta de bom gosto e um exagero que definitivamente não é aprazível nem mesmo pelo mais aberto espectador – não é à toa que vemos em uma constância maior que o desejado inúmeros longas-metragens que têm como pano de fundo uma premissa arbitrária e datada. Talvez nos últimos anos as mentes por trás das produções audiovisuais hollywoodianas perceberam que algo deveria ser feito e gradativamente passaram a se preocupar um pouco mais com um gênero tão importante quanto este.
Com o advento da plataforma Netflix e as subsequentes tentativas de ampliar o mercado consumidor, tivemos a insurgência de séries como ‘Unbreakable Kimmy Schmidt’, que definitivamente deixou a sua marca e que reafirmou um lugar há muito perdido para histórias desse tipo – talvez colocando em uma glória esquecida outras obras como ‘Veep’ e ‘Modern Family’. E mesmo em uma originalidade prestes a acabar, nomes como Michael Schur conseguiram encontrar voz e nos levar para algo inesperado com a estreia de ‘The Good Place’.
A religião e os conceitos de Paraíso e Inferno sempre foram tratados com a máxima cautela possível, visto que o tema é enxergado como tabu até hoje e tangencia polêmicas um tanto quanto desnecessárias. E ainda que essa tenha sido a força-motriz para Schur arquitetar uma perspectiva irreverente, ele o fez com a maior dignidade que encontrou sem se esquecer de críticas sociais que vão de encontro ao fundamentalismo humano. Logo no primeiro episódio, não temos ideia do que está acontecendo; apenas seguimos os passos de Eleanor Shellstrop (Kristen Bell no que podemos encarar como uma das melhores performances de sua carreira) e a revelação de que ela está morta.
Tudo bem, essa é uma notícia que normalmente costuma nos chocar, ainda mais quando a ideia de “vida após a morte” se assemelha a uma extensão do mundo terrestre. E é (mais ou menos). Eleanor descobre que ela foi uma das poucas escolhidas a fazer parte do Lugar Bom, um vilarejo literalmente construído pelas angelicais mãos do arquiteto Michael (Ted Danson), que até mesmo abdicou de seu lugar na gerência para conviver entre os humanos que encontraram a tão aguardada paz. Mas tem um problema: Eleanor na verdade não é uma pessoa essencialmente boa e foi confundida com alguma ativista humanitária que lutou contra a fome e a desigualdade nos países da África; esta Falsa Eleanor na verdade é a representação de uma personalidade corrompida pelo egoísmo e pelo individualismo – e não pense que essas percepções estão escondidas, muito pelo contrário: elas são tão claras que chega a ser absurdo.
Sem dúvida alguma, o maior mérito da série vai para o roteiro. Além da sábia escolha de padronizar os episódios com uma média de 23 minutos, o ritmo e a conexão entre cada uma das subtramas tem mais espaço para ser aprofundada e, em se tratando de algo sobrenatural e espiritual, pode beirar o impossível desde que explicações sejam fornecidas ao longo da temporada. Assim como outras comédias recentes, cada uma das escolhas dos protagonistas é relembrada e tem suas próprias consequências, aumentando a complexidade de suas personalidades e do “livre-arbítrio” que tanto é explorado pelo show.
Em outras palavras, a ideia principal é mostrar que nem mesmo no Paraíso estamos livres dos nossos erros. Por mais que personagens como o extremamente ético Chidi (William Jackson Harper) ou a altruísta-nem-um-pouco-modesta Tahani (Jameela Jamil) façam questão de mostrar que Eleanor não pertence àquele lugar de jeito algum, as questões de superioridade espiritual são postas em cheque no momento em que as tramas resolvem humanizá-los ao máximo. Mesmo em condições oníricas e angelicais, eles têm sim erros – ora, até mesmo Michael é perscrutado por escolhas mesquinhas e que entram em paradoxo com o que representa.
A comédia é propositalmente escrachada e autoexplicativa, o que aumenta o ridículo e até mesmo faz referências abertas à commedia dell’arte. Desse modo, não podemos encontrar um núcleo dramático e outro cômico em seus extremos, mas uma amálgama que, ao mesmo tempo, os aproxima e os distancia – e isso não se mantém apenas nos diálogos; toda a estética do Lugar Bom segue uma ideia kitsch, brusca, numa delineação de cores opostas que influencia na constante crise pela qual os protagonistas passam. Em várias cenas, por exemplo, temos a presença do amarelo e do azul na composição cênica, seja no figurino, seja nos cômodos, e a saturação aumenta à medida em que as emoções se tornam mais intensas.
Como se não bastasse, Schur também fez questão de adicionar alguns elementos de puro êxtase criminal, por assim dizer, deixando pistas imperceptíveis para o público finalmente conectar as peças faltantes juntamente à Eleanor. Fosse pela presença adorável do sistema universal conhecido como Janet (D’Arcy Carden) ou pelo apreço ao frozen yogurt, cada elemento trouxe uma metáfora iconoclasta para analisar o que é realmente ser bom e ser ruim e como esses maniqueísmos não são aplicados do mesmo modo na teoria e na prática. Em outras palavras, digamos que as máscaras caíram de uma forma tão surpreendente na season finale que é difícil não soltar um suspiro de indignação.
‘The Good Place’ é uma das poucas produções contemporâneas que realmente resgatam a essência da comédia, repaginando-a com olhares ao mesmo tempo nostálgicos e originais. E com um cliffhanger como este e uma equipe de ponta, é quase instantâneo apertar o botão para continuar se aventurando em um lugar que não é tão bom assim quanto parece.