‘ARTPOP’ talvez seja o álbum mais controverso de Lady Gaga. Não apenas por afastar-se completamente do dance pop e do eletro rock típicos de seus álbuns anteriores, endossados com uma investida mais metal em ‘Born This Way’, mas por falar abertamente sobre assuntos considerados tabus pela sociedade mais conservadora e retrógrada. Não é à toa que, à época de seu lançamento há seis anos, a cantora declarou ironicamente que iria revolucionar o cenário musical – e ela de certo modo fez isso, não pela construção das faixas do álbum, visto que todas partem da mesma base, mas sim por trazer à tona assuntos que são discutidos pelas pessoas, só não publicamente. E também não é nenhuma surpresa que o disco tenha se tornado um fracasso de crítica e tenha sido redescoberto recentemente como um dos mais subestimados da cantora.
Fincado completamente no EDM e no synthpop, uma versão mais visceral e eletrônica do pop clássico, o álbum em si fala sobre crimes passionais, sexo, drogas e, em seu escopo total, sobre a criatividade. Em diversas faixar, Gaga utiliza sua reputação e as crescentes críticas ao seu estilo e às suas mudanças identitárias para mostrar que é uma artista completa, uma participante da indústria do entretenimento que preza pela originalidade e que, ao mesmo tempo em que conversa com os fãs, também conversa consigo mesma. Não é à toa que, após o lançamento de ‘The Fame Monster’, a cantora tenha preferido utilizar de acontecimentos pessoais para criações cada vez mais intimistas.
“Aura” é a música que abre o álbum. Iniciando-se com técnicas de influências musical western, principalmente a presença dos mariachis, Gaga disserta sobre sua própria criatividade, a qual está protegida por um véu metafórico que também serve como refúgio para sua aura artística. Não é à toa que essa insanidade emerge inúmeras vezes pelas risadas dissonantes no começo e pelo uso de alteradores eletrônicos de voz em certas partes, conferindo uma aproximação ao EDM que não só torna a faixa interessante de ser analisada, mas também envolvente. E se essa crueza é vista com certa cautela aqui, em “Applause”, o lead single do álbum, nota-se um grande amadurecimento da própria Gaga, a qual faz uma homenagem para seus fãs – os little monsters – e abraça os aplausos que recebe com tanto carinho, não se importando com duras críticas que recebeu em sua carreira.
A criatividade defendida com unhas e dentes pela cantora não se restringe apenas à sua persona, mas também alastra-se àqueles que sempre participaram de sua vida e permitiram que insurgisse como o ícone que é hoje. Pode-se falar, então, que a extensão de sua personalidade finca-se nos próprios figurinos irreverentes e completamente chocantes que utiliza, saudados com imensa ovação nas incríveis composições de “Fashion!” e “Donatella”: enquanto uma fala com grandiloquência sobre o trabalho dos designers e sobre sua capacidade de tradução materialista os desejos mais inerentes do ser humano, a outra explana-se como uma ácida crítica ao mundo em que modelos são submetidas para aproximar o onírico dos meros mortais (“você comeu apenas uma salada hoje; boulangerie”, ela diz em certo momento da segunda faixa).
As drogas também entram como parte importante dessa fase de Gaga, principalmente a maconha. Em diversas momentos, é possível ver como as propriedades tranquilizadoras dessa planta permitiram que as músicas da cantora fossem compreendidas muito além da superfície – uma apologia sincera e clara. “Mary Jane Holland” utiliza um dos inúmeros sinônimos para a droga e inclusive fala sobre o infundado tabu acerca dela e que acompanha as gerações mais velhas (“Eu sei que mamãe e papai me acham uma completa bagunça”); “Jewels N’ Drugs”, por sua vez, traz isso para um mundo mais elitizado, permeado pelo escambo e pela uso de produtos mais pesados por aqueles que conseguem adquiri-los. Até mesmo “Dope” utiliza-se como base a planta, apesar de ter um foco melódico muito mais emocional, dizendo que o eu lírico necessita do amor de alguém que esnobou em detrimento da inebriante e passageira sensação que as drogas lhe garantem.
‘ARTPOP’ também é um disco humano; ele fala de pessoas, de como a influência delas, tanto no âmbito psíquico quanto no físico, contribuem para o endossamento de Gaga como pessoa. Seja desesperada por “uma cura” perante alguém que prometeu amá-la e depois a abandonou, em “MANiCURE”, ou apenas escolhendo passar uma única noite com um amante que poderá levá-la nas mais diversas aventuras, como “Gypsy”, ela preza pela companhia e não gosta de se sentir sozinha. Essa assunto, por mais que não seja visto com maus olhos, não é comentado de forma tão aberta por estar associado a momentos de fraqueza, até hoje condenados por uma parcela da sociedade firmada no patriarcado.
Mas é com o expressionismo inegável de “Swine” que esse querer pela companhia atinge um nível assustador. Em um ritmo sintético esquizofrênico e muito pesado, tanto os acordes em teclado quanto os crescendos posicionados de forma profusa na construção musical, a faixa fala basicamente sobre abuso sexual, o mesmo sofrido pela cantora por um produtor quanto tinha apenas 19 anos. Ela não liga para mais nada nesse ponto do álbum, e apenas preza por falar o que ficou preso em sua garganta por um tempo cruelmente longo.
Talvez o ápice do álbum venha com seu empoderamento. É um fato dizer que artistas femininas que falem abertamente sobre sua sexualidade são vistas como depravadas – e Gaga não apenas decide mover-se através dessas turvas águas, como também cria inúmeros afluentes para que artistas posteriores possam fazer a mesma coisa, incluindo Miley Cyrus e, mais recentemente, Selena Gomez. Em sua trilogia artística, o suprassumo musical que inclui “Artpop”, “Venus” e “G.U.Y.”, a cantora permite-se realizar diversas referências a movimentos vanguardistas no mundo inteiro, buscando inspiração em Andy Warhol e na cultura greco-romana para criar um microcosmos sexual totalmente desprovido de preconceitos. Ao mesmo tempo em que aceita sua condição como um ser que necessita dos prazeres da carne, ela também almeja pelo controle da situação, podendo ir e vir quando quiser e escolher com quem e com quantos quer estar (“Eu quero o poder para te deixar, eu quero o controle desse amor”). Gaga não fala de obsessão, e sim de um poder pessoal que é de extrema importância para a sobrevivência humana.
Tudo culmina em “Do What U Want”, um dos singles promocionais que fez grande sucesso nas rádios. Aqui, ela tem plena consciência de que seu corpo pertence ao outro, mas seu coração, sua mente e seu livre-arbítrio não. Buscando referência de dominação e submissão já vistas em seu álbum anterior, essa faixa abre margem também para uma possível consequência da aceitação do sexo como força-motriz de diversos momentos do cotidiano, inclusive um apreço pelo impossível e pela traição onírica em “Sexxx Dreams”.
‘ARTPOP’ é uma obra essencialmente irreverente. Sua completude representa uma capacidade crítica e de aceitação nem um pouco ortodoxa para Lady Gaga, e o negativismo que recebeu acerca de seu lançamento apenas mostra o quanto a obra é importante para uma libertação mais do que necessária para aqueles que se escondem. Sua visceralidade, sua crueza e seu pouco convencionalismo musical são pontos que, além de marcarem uma mudança drástica em sua carreira, permitiriam uma futura autorreflexão que, em dado momento da vida, chega para todos nós.