2020 pode estar sendo um ano atípico em vários sentidos, mas a televisão continua fazendo o seu papel para nos entreter e emocionar. Nos primeiros seis meses do ano, as telinhas nos entregaram uma leva preciosa de atrações que provam o quanto ainda podemos nos surpreender mesmo nos momentos mais angustiantes da humanidade e sem sair de casa. Deu para rir, chorar, ficar com medo, sentir a cabeça dando um nó na tentativa de entender o que está acontecendo e até ter uma pontinha de esperança na humanidade.
A lista leva em consideração apenas séries que estrearam oficialmente no Brasil, e isso faz com que algumas grandes atrações tenham precisado ficar de fora — como as excelentes ‘Better Things’, ‘What We Do in The Shadows’, ‘Devs’ e ‘Mrs. America’. Agora, sem mais delongas, vamos às escolhidas!
The Plot Against America
Talvez não estejamos no melhor momento, tratando de um emocional coletivo, para uma série que trata do crescimento do nazismo nos Estados Unidos da América, mas aqui estamos. A minissérie é uma peça de história especulativa baseada no livro homônimo de Phillip Roth, partindo das mentes criativas de David Simon e Ed Burns (‘The Wire’), e imagina o que teria acontecido caso o aviador Charles Lindbergh tivesse vencido as eleições presidenciais de 1940 no lugar de Franklin Delano Roosevelt. Pontuada com as excelentes atuações de Zoe Kazan, Winona Ryder e John Turturro como parte da comunidade judaica, ‘The Plot Against America’ usa uma cinematografia bastante clássica para fazer o contraponto e despertar no espectador um sentimento incômodo de que algo não está certo enquanto o antissemitismo cresce pelas beiradas do que muitos chamam de exagero.
Dark
A ficção científica alemã que deu o que falar com os seus episódios finais foi a responsável por muitas dores de cabeça para a sua audiência. Enquanto nos desdobrávamos para entender quem somos, onde estamos e que dia é, o drama desatava seus nós para entregar um final simples e reconfortante como um contraponto de tantas linhas narrativas se cruzando o tempo todo. ‘Dark’ pode não ter inventado todos os conceitos dos quais bebeu com tanta vontade, mas o fato de equilibrar com toda aquela aparente facilidade uma quantidade absurda de tramas como se estivesse escrevendo um episódio de CSI é nada menos que impressionante.
Little Fires Everywhere
‘Big Little Lies’ pode até ter chegado ao fim, mas esta aqui é para ninguém sentir saudades de Madeline McKenzie. Reese Witherspoon e Kerry Washington (‘Scandal’) dividem o protagonismo desta minissérie do Prime Video que mistura mistério, drama familiar e uma narrativa poderosa sobre o racismo estrutural, tudo isso no meio da década de 1990 com discussões que caminhavam a passos lentos sobre visibilidade LGBTQ+ e, é claro, aquela boa inimizade entre Elena (Witherspoon) e Mia (Washington) que faz a gente vibrar de raiva e alegria ao mesmo tempo.
The Great
Huzzah! ‘The Great’ é a história de Catarina, a Grande como você nunca viu. Apenas levemente baseada no que a história nos conta, a adaptação da peça teatral de Tony McNamara (‘A Favorita’) narra os primeiros anos após Catherine (Elle Fanning) ter chegado à Rússia para seu casamento com o então imperador, Peter III (Nicholas Hoult). A história “ocasionalmente verdadeira” é na verdade um conto sobre a libertação feminina que se delicia com a justaposição do belo com o grotesco em cena e usa uma espécie de anacronismo ao seu favor quando deixa o olhar moderno e progressista de sua protagonista transparecer. Todas as nuances da personagem — ingênua, apaixonada, inspiradora, sagaz — são acentuadas pela forma como Fanning, também produtora executiva da atração, acerta o tom para que a ostensibilidade cômica de todo o entorno (o exagero faz parte de seu teor teatral) não interfira na complexidade de sua atuação. É a transição da atriz de papéis jovens para papéis adultos e com autoridade e, assim como Catherine. ela domina o campo com muita maestria.
The Good Place
O que acontece depois que você morre? E se você for parar no lugar errado? O que começou como uma comédia aparentemente despretensiosa foi ganhando traquejo naquele tipo de evolução que é típica dos trabalhos de Mike Schur. Desta forma, ‘The Good Place’ foi ao longo dos anos se transformando em uma potente comédia niilista cujas investigações sobre a psique humana se baseiam mais nas nossas relações do que na forma como nos apresentamos em sociedade. Se a temporada final dessa comédia se abriu com alguns tropeços, sobretudo em relação aos novos personagens, finalizou sendo exatamente o que a transformou em algo diferente na televisão: com a pura honestidade de mostrar que ninguém cresce sozinho e que a busca e a descoberta são muito mais empolgantes do que a resposta.
Todxs Nós
Uma das mais recentes produções brasileiras da HBO, ‘Todxs Nós’ é um retrato raro de uma multiplicidade de vozes e gêneros. Um retrato raro não apenas dentro do cenário brasileiro, mas em todo o escopo de produções televisivas que estamos habituados a consumir no mar de streaming. Mas não é só isso que faz dela excepcional. A ousadia da história montada por Daniel Ribeiro, Vera Egito e Heitor Dhalia está em deixar o incômodo transparecer não porque os três protagonistas fazem parte de minorias, mas porque isso não os isenta de serem humanos imperfeitos, questionadores e questionáveis. Eles quebram paradigmas, mas também se sentem confortáveis dentro de alguns — complexidade humana é assim. A jornada de evolução e comunhão entre Rafa (Clara Gallo), Maia (Julianna Gerais) e Vini (Kelner Macêdo) é uma trama universal pincelada com detalhes que volta e meia ficam com você depois de cada episódio. É essa pulguinha atrás da orelha que vira a cereja do bolo.
Visible: Out on Television
Com tantas discussões sobre representatividade e visibilidade de minorias nas telas, chega a ser curioso um trabalho como ‘Visible: Out on Television’ não ter sido feito antes. O distanciamento temporal de boa parte de seus objetos de estudo, portanto, talvez seja um de seus maiores trunfos. Em cinco episódios, a série documental retoma o histórico de representatividade LGBT+ nas telas norte-americanas dos primórdios da década de 1960 até os tempos atuais. Mais do que um registro, no entanto, a série tece relações entre como a televisão retrata(va) a comunidade e como isso moldou a visão da sociedade ao longo dos anos. Jamais apologético, o documentário toca nas feridas onde o movimento falhou, e ajuda a entender o quanto já foi percorrido e o quanto ainda falta.
BoJack Horseman
A temporada final de ‘BoJack Horseman’ foi dividida em duas partes, deixando para 2020 os últimos oito episódios desta animação que fica na história como um feito raro — uma série da Netflix que durou mais do que três temporadas e chegou ao fim sem perder o gás. BoJack sempre transitou muito bem entre a comédia e o drama, utilizando o sarcasmo do seu protagonista para abordar com muita delicadeza os traumas do abandono familiar e os grandes problemas da indústria do entretenimento. Na jornada final, Raphael Bob-Waksberg não poupa nosso cavalão de encarar suas próprias falhas e as dores que fazem parte de quem ele é. ‘BoJack Horseman’ chega ao fim não apenas como a melhor série da Netflix, mas um dos dramas mais emocionalmente complexos que a TV viu recentemente. Não é para qualquer um.
I May Destroy You
Se você nunca ouviu falar de Michaela Coel, guarde o nome. A comediante (mais conhecida por ‘Chewing Gum’) tira inspiração de sua própria história para esta versão ficcionalizada. Na série, acompanhamos Arabella, que está virando a noite no escritório para terminar de escrever seu segundo livro. Ela decide dar uma pausa para encontrar um amigo em um bar, e acaba tendo sua bebida adulterada e é atacada por dois homens. ‘I May Destroy You’ é a jornada de Arabella (e de Micaela) tentando entender o que é inexplicável. A série passeia por diversos gêneros em busca da resposta para a pergunta que não cala: como seguir em frente depois de ser atingida por um trauma tão grande?
Normal People
A princípio, ‘Normal People’ parece aquela série banal sobre um romance jovem que você veria em uma tarde de sábado sob as cobertas com uma panela de brigadeiro. Fofinha, com um elenco bonito, de fácil digestão, nada de novo. Mas a atração britânica vai além disso ao utilizar a relação tórrida entre Connell (Paul Mescal) e Marianne (Daisy-Edgar Jones) para refletir sobre a dificuldade de comunicação da geração Millennial, fazendo com que a profunda conexão entre eles seja ao mesmo tempo doce e dolorosa, universal e extremamente específica. Adaptada do romance best-seller de Sally Rooney nas lentes habilidosas de Lenny Abrahamson e Hettie Macdonald, esta minissérie é um caso raro de um retrato extremamente sensível em que cada respiração e cada toque tem muito a dizer. E diz muito bem.
Better Call Saul
A penúltima temporada da série derivada de ‘Breaking Bad’ continua a rota de ascensão e talvez seja a melhor leva de episódios até agora. A atração, original do canal AMC e exibida no Brasil pela Netflix, segue como um mostruário para os talentos não apenas de Bob Odenkirk mas também da excelente Rhea Seehorn e, nesta temporada, da adição Tony Dalton. Aos poucos, os dois cantos da composição — de um lado, a transformação de Jimmy em Saul e, do outro, a imersão de Mike (Jonathan Banks) no mundo dos cartéis — foram se transformando em uma coisa só. O resultado é uma temporada não apenas veloz em que ninguém está salvo, mas também uma construção de expectativa, destruição e transformação dos personagens que não deve em nada a Walter White. Por vezes, ‘Better Call Saul’ até o supera.