sexta-feira , 22 novembro , 2024

Autores se demitem da agência editorial de J.K. Rowling após polêmica de transfobia

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As polêmicas acerca dos comentários transfóbicos de J.K. Rowling nas últimas semanas ganharam proporções ainda maiores e, nos recentes dias, nada menos que quatro autores da agência The Blair Partnership, supervisionada pela autora, se demitiram devido à “falta de posicionamento” em relação à comunidade trans.

“Essa decisão não foi fácil de ser tomada e estamos tristes e desapontados por termos chegado a esse ponto”, diz o comunicado oficial, assinado por Drew Davies, Ugla Stefanía KristjonudottirFox Fisher e um quarto nome não identificado. “Após os comentários de J.K. Rowling sobre questões de transgêneros, contatamos a agência com um convite para reafirmar a posição favorável à comunidade. Após a conversa, tivemos a sensação de que eles eram incapazes de se comprometer com ações apropriadas e significativas. […] Somos solidários com a comunidade LGBTQ+ em todas as áreas de publicação que trabalham para defender diversas vozes e experiências para colocar em xeque a homogeneidade da indústria”.



Recentemente, Rowling publicou uma carta aberta defendendo seus comentários e seu ponto de vista.

Confira, na íntegra:

“Essa não é uma carta fácil de escrever, por razões que logo se mostrarão claras, mas sei que é momento de me explicar acerca de um tema cercado de toxicidade. Eu escrevi isso sem qualquer intenção de acrescentar mais toxicidade.

Para as pessoas que não sabem: em dezembro do ano passado, fiz um tuíte em apoio a Maya Forstater, uma especialista em impostos que havia perdido seu trabalho por postagens ‘transfóbicas’. Ela levou seu caso para um tribunal trabalhista, pedindo para que o juiz julgasse se uma crença filosófica que sexo é determinado pela biologia é protegido pela lei. O Juiz Taylor disse que não.

Meu interesse em temas trans é pré-datado ao caso de Maya por quase dois anos, durante o qual acompanhei os debates sobre conceitos de identidade de gênero de perto. Conheci pessoas trans, li vários livros, blogs, artigos de pessoas trans, especialistas de gênero, pessoas interssexuais, psicólogos, especialistas, trabalhadores sociais e doutores, e segui o discurso online e em mídia tradicional. Em certo nível, meu interesse nesse tema tem sido profissional, pois estou escrevendo uma série criminal, ambientada nos dias de hoje, e minha detetive protagonista é de uma idade que se interessa e que é afetada por isso; mas em um nível pessoal também, como irei explicar.

Durante todo o tempo que vim pesquisando e aprendendo, acusações e ameaças de ativistas trans começaram a aparecer em meu Twitter. Tudo isso foi engatilhado por uma ‘curtida’. Quando comecei a me interessar em identidade de gênero e discussões transgêneras, comecei a tirar fotos de comentários que me interessavam, como modo de me lembrar o que deveria pesquisar mais tarde. Em uma ocasião, eu, sem percebi, apertei o botão de ‘curtir’ em vez de tirar uma foto. Aquela única ‘curtida’ foi evidência de pensamentos errôneos e um persistente baixo nível de assédio começou.

Meses depois, eu aumentei meu crime ao seguir Magdalen Burns no Twitter. Madgalen foi uma jovem e corajosa feminista e lésbica que estava morrendo em virtude de um tumor cerebral. Eu a segui porque gostaria de entrar em contato com ela diretamente, o que consegui. Entretanto, visto que Magdalen foi uma grande credora da importância do sexo biológico e não acreditava que lésbicas deveriam ser chamadas de fanáticas por não namorarem mulheres trans com pênis, os pontos se juntaram nas cabeças das ativistas trans, e o nível de abuso social aumentou.

Eu menciono tudo isso apenas para explicar que eu sabia perfeitamente o que iria acontecer quando eu apoiei Maya. Eu deveria estar no meu quarto ou quinto cancelamento na época. Eu esperava as ameaças de violência, que me diriam que eu ‘estava literalmente matando pessoas trans com meu ódio’, de ser chamada de vadia e, é claro, por meus livros serem chamados, apesar de um homem particularmente abusivo me disse que iria compostá-los.

O que eu não esperava, nas consequências do meu cancelamento, era uma avalanche de e-mails e cartas que choveram em mim, a maioria das respostas positivas, agradecidas e apoiadoras. Eles vieram de uma seção de pessoas gentis, empáticas e inteligentes, algumas trabalhando em campos que lidavam com disforia de gênero e pessoas trans, com preocupações profundas sobre o modo que os conceitos sociopolíticos estão influenciando a política, as práticas médicas e salvaguardas. Eles estão preocupados sobre os perigos para as pessoas jovens, gays e sobre a erosão de direitos de mulheres e garotas. Acima de tudo, estão preocupados sobre um clima de medo que não fará bem a ninguém – principalmente a juventude trans.

Eu havia me afastado do Twitter por vários meses tanto antes quanto depois de tweetar em apoio a Maya, porque eu sabia que não estava fazendo bem para minha saúde mental. Eu apenas retornei, porque queria compartilhar um livro infantil gratuito durante a pandemia. Imediatamente, ativistas que claramente acreditam ser bons, progressistas e gentis, assolaram minha timeline, acreditando no direito de policiar meu discurso, me acusar de ódio, me chamar de misoginia, me insultar e, acima de tudo – como qualquer mulher envolvida nesse debate saberá -, de TERF.

Se você não sabia – e por que deveria? -, ‘TERF’ é um acrônimo criado por ativistas trans que significa Feministas Radicais Trans-Excludentes. Na prática, uma seção considerável e diversa de mulheres estava sendo chamada de TERFs e a grande maioria nunca nem foram feministas radicais. Exemplos das chamadas TERFs variam da mãe de um jovem gay que estava com medo de que seu filho quisesse fazer a transição para escapar do preconceito homofóbico, para uma idosa histérica anti-feminista que jurou nunca mais voltar ao Marks & Spencer porque estavam permitindo que qualquer homem que se identificava como mulher entrar no provador feminino. Ironicamente, feministas radicais nem ao menos são trans-excludentes – elas incluem homens trans em seu feminismo, porque nasceram mulheres.

Mas essas acusações foram o bastante para intimidar muitas pessoas, instituições e organizações que outrora admirava, que se acovardaram ante a táticas infantiloides. ‘Eles irão nos chamar de transfóbicos!’. ‘Eles irão dizer que eu odeio pessoas trans!’. E depois, vão dizer que têm pulgas? Falando como uma mulher biológica, várias pessoas em posições de poder realmente precisam criar coragem”. [aqui, Rowling faz uma piada de mal gosto com a expressão “grow a pair”, dizendo que “é algo literalmente possível, de acordo com as pessoas que dizem que peixes-palhaço provam que humanos não são uma espécie dismórfica”.]

“Então por que estou fazendo isso? Por que falar? Por que não fazer minha pesquisa quietamente e manter minha cabeça abaixada?

Bom, eu tenho cinco razões em ficar preocupada com esse novo ativismo trans, e decidi que preciso falar.

Primeiramente, eu tenho um fundo de caridade focado em aliviar de privações sociais na Escócia, com ênfase em particular em mulheres e crianças. Dentre outras coisas, meu fundo apoia projetos para prisioneiras e para sobreviventes de abusos sexual e doméstico. Eu também financio pesquisas médicas sobre esclerose múltipla que se comporta de maneiras diferentes em homens e mulheres. Ficou claro para mim, há algum tempo, que o novo ativismo trans está tendo (ou deve ter, se todas as demandas forem atendidas) um impacto em várias das causas que apoio, porque está forçando uma erosão da definição legal de sexo e substituindo-o por gênero.

A segunda razão é que sou uma ex-professora e a fundadora de uma caridade para crianças, o que me dá interesse tanto em educação quanto em segurança. Assim como vários, eu tenho preocupações sobre os efeitos do movimento trans em ambos.

A terceira é que, por mais que seja uma autora banida, estou interessada em liberdade de expressão e tenho defendendo-a publicamente, mesmo no tocante a Donald Trump.

A quarta é onde as coisas começam a ficar pessoais. Estou preocupada sobre essa gigantesca explosão em mulheres jovens que querem fazer a transição e também sobre os números crescentes daqueles que des-transicionam (retornam para seu sexo original), porque se arrependem de ter feito algo que, em alguns casos, alteraram seus corpos irrevogavelmente, e tirado sua fertilidade. Alguns dizem que eles decidem transicionar depois de perceberem que têm atração pelo mesmo sexo, e que transicionar é parte movida pela homofobia, seja pela sociedade ou pela família.

A maioria das pessoas provavelmente não estão cientes – eu certamente não estava, até começar a pesquisar sobre isso – que, dez anos atrás, a maioria das pessoas querendo transicionar para o sexo oposto eram homens. A taxa agora foi revertida. O Reino Unido teve um aumento de 4400% de garotas desejando fazer o tratamento. Garotas autistas são fortemente representadas nesses números.

O mesmo fenômeno foi visto nos Estados Unidos. Em 2018, a pesquisadora e médica Lisa Littman foi explorar mais sobre isso. Numa entrevista, ela disse:

‘Pais online estavam descrevendo um padrão bastante incomum de identificação transgênera, na qual vários amigos e até mesmo grupos inteiros de amigos se identificavam como transgêneros ao mesmo tempo. Eu estaria errada se não considerasse contágio social e influências como fatores potenciais’.

Littman mencionou o Tumblr, o Reddit, o Instagram e o YouTube como fatores contribuintes para a Rápida Disforia de Gênero, na qual acredita que, no âmbito da identificação transgênera, ‘a juventude veio crescendo particularmente através de câmaras de eco’.

Seu artigo causou um furor. Ela foi acusada de viés ideológico e de espalhar informações falsas sobre pessoas transgênero, sujeita a um tsunami de abusos e uma campanha para descreditar tanto ela quanto seu trabalho. A revista tirou o artigo da internet e o reviu antes de republicá-o. Entretanto, sua carreira teve uma queda similar à sofrida por Maya Forstater. Lisa Littman ousou desafiar um dos pilares do ativismo trans, que é a concepção de identidade de gênero como inata, assim como a orientação sexual. Ninguém, os ativistas insistiram, poderia ser persuadido em ser trans. 

O argumento de vários ativistas trans é que, se você não deixar um adolescente com disforia de gênero transicionar, eles irão se matar. Em um artigo explicando o motivo de ter saído de Tavistock (clínica de gênero na Inglaterra), o psiquiatra Marcus Evans declarou que a ideia de crianças se matando caso não pudessem transicionar, não se ‘alinham substancialmente com quaisquer dados ou estudos na área. Nem mesmo se alinham com os casos que encontrei ao longo de décadas como psicoterapeuta’.

Os escritos de um jovem homem trans revelam um grupo de pessoas notavelmente sensíveis e sagazes. Quanto mais lia sobre suas declarações acerca de disforia de gênero, com descrições sobre ansiedade, dissociação, transtornos alimentarem, automutilação e ódio, mais me perguntava se, caso eu nascesse trinta anos mais tarde, eu também iria transicionar. A tentação de escapar da feminilidade seria grande. Eu lidei com um severo TOC quando adolescente. Se eu tivesse encontrado uma comunidade online que não conseguia encontrar em meu ambiente imediato, eu acredito que seria persuadida em me transformar no filho de meu pai que ele abertamente dizia que teria preferido.

Quando leio sobre a teoria de identidade de gênero, me lembro o quão mentalmente sem sexo eu me sentia. Eu lembrava das descrições de Colette sobre ser uma ‘hermafrodita mental’, e as palavras de Simone de Beauvoir: ‘é perfeitamente natural para a mulher do futuro se sentir indignada com as limitações impostas sobre seu sexo. A verdadeira questão não é se ela deve rejeitá-los, mas sim entender o motivo de aceitá-los’.

Visto que não tinha uma possibilidade realística de me tornar homem nos anos 1980, foram os livros e a música que me ajudaram a lidar com problemas de saúde mental e escrutínio sexual e julgamento que coloca várias garotas contra seus corpos quando adolescentes. Felizmente, para mim, encontrei meu próprio senso de alteridade, e minha ambivalência sobre ser uma mulher, refletida no trabalho de escritoras mulheres e musicistas que me garantiram que, apesar de tudo o que um mundo sexista tenta falar sobre o corpo feminino, não há problema em não se sentir compatível dentro de sua cabeça; não há problema em se sentir confusa, na escuridão, sexual ou não-sexualmente incerta de quem ou do que você é.

Eu quero ser bastante clara aqui: sei que transicionar será uma solução para alguns casos de disforia de gênero, ainda que eu esteja clara, através de uma extensa pesquisa, que estudos mostraram consistentemente que entre 60% e 90% de adolescentes com disforia de gênero irão crescer fora de sua disforia. De novo, me pediram para ‘apenas conhecer algumas pessoas trans’. Eu fiz isso: além de conhecer vários jovens, todos adoráveis, conheço uma mulher que se descreve como transsexual que é mas velha que eu e maravilhosa. Apesar de ser aberta sobre seu passado como um homem gay, eu sempre achei difícil pensar como ela como qualquer pessoa além de uma mulher, e acredito (e espero) que ela esteja feliz por ter transicionado. Ser mais velha, entretanto, a fez passar por um processo longo e rigoroso de avaliação, psicoterapia e transformação por etapas. A explosão atual do ativismo trans está urgindo por uma remoção de quase todos os sistemas robustos, através dos quais os candidatos a reatribuição de gênero devem passar. Um homem que não pretende passar por cirurgia e não tomar hormônios pode garantir a si mesmo um Certificado de Reconhecimento de Gênero e ser uma mulher respaldada pela lei. Muitas pessoas não têm ciência disso.

Estamos vivendo no período mais misógino que já presenciei. Nos anos 1980, eu imaginava que minhas filhas futuras caso eu tivesse alguma, teriam muito mais do que eu tive, mas entre o backlash feminista e uma cultura saturada de pornografia, acredito que as coisas ficaram piores. Nunca vi uma mulher denegrida e desumanizada como vejo hoje. Do líder de um mundo livre com uma triste história de assédio sexual e seu orgulho em dizer ‘pegá-las pela vagina’, até o movimento dos celibatários involuntários que se volta contra as mulheres que não vão transar com eles, para as ativistas trans que declaram que TERFs merecem apanhar e serem re-educadas, homens nesse espectro político parecem concordar: mulheres estão pedindo por problemas. Em todo lugar, mulheres estão sendo mandadas para calar a boca e sentar.

Eu li todos os argumentos sobre feminilidade não residir no corpo sexual, e as asserções que mulheres biológicas não têm experiências comuns, e eu os vejo, também, como profundamente misóginos e retrógrados. É claro também que um dos objetivos de negar a importância do sexo é erodir que o que alguns parecem enxergar como uma ideia segregacionista e cruel de que as mulheres têm suas próprias realidades biológicas ou – ameaçador do mesmo jeito – realidade unificadoras que as transformam em uma classe política coesa. As centenas de e-mails que recebi nos últimos dias prova que essa erosão preocupa vários outros. Não é o bastante para mulheres serem aliadas ao movimento trans. Mulheres devem aceitar e admitir que não há diferenças entre elas e as mulheres trans.

Mas várias mulheres me disseram antes que ‘mulher’ não é uma fantasia. ‘Mulher’ não é uma ideia na mente de um homem. ‘Mulher’ não é um cérebro cor de rosa, um receptáculo de Jimmy Choos ou qualquer das outras ideias sexistas que agora são ditas como progressistas. Além disso, a linguagem ‘inclusiva’ que chama as mulheres de ‘menstruadoras’ e ‘pessoas com vulvas’ diminui e desumaniza tantas mulheres do mesmo modo. Eu entendo o motivo das ativistas trans considerarem essa linguagem apropriada e gentil, mas para nós que fomos humilhadas por homens violentos, não é neutro, é hostil e alienável.

O que me traz para a quinta razão pela qual estou profundamente preocupada com as consequências do atual ativismo trans.

Estive no olho público por quase vinte anos e nunca falei publicamente sobre ser abusada doméstica e sexualmente. Não é por que tenho vergonha do que aconteceu a mim, mas sim porque é traumático revisitar e relembrar. Eu também me sinto protetora sobe minha filha do primeiro casamento. Não queria custódia completa de uma história que pertence a ela, também. Entretanto, um tempo atrás, eu a perguntei como ela se sentiria caso fosse a público falar sobre essa parte da minha vida, e ela me encorajou a seguir em frente.

Estou mencionando essas coisas agora não numa tentativa de gerar empatia, mas sim de solidariedade quanto ao número gigante de mulheres que têm histórias como a minha, que foram chamadas de intolerantes por tem preocupações sobre espaços de um sexo apenas.

Eu consegui escapar do meu primeiro casamento violento com certa dificuldade, mas agora estou casa com um homem bom e com princípios, segura e protegida de modos que não imaginava nem em um milhão de anos. Entretanto, as cicatrizes deixadas pela violência e pelo abuso sexual não desaparecem, não importa o quão amada você seja, e não importa o quanto de dinheiro você tenha. Meu nervosismo perene é uma piada familiar – e até eu sei que é engraçada -, mas rezo que minhas filhas nunca tenham as mesmas razões que tenho de odiar barulhos altos, ou ser surpreendida por pessoas atrás de mim.

Se você pudesse entrar em minha cabeça e compreender o que eu sinto quando leio sobre uma mulher trans morrendo nas mãos de um homem violento, encontraria solidariedade e afinidade. Eu tive uma sensação visceral do terror pelo qual essas mulheres trans passaram os últimos segundos na Terra, porque tive momentos do mais puro e cego medo, quando percebi que a única coisa me mantendo viva era a hesitação do meu agressor.

Acredito que a maioria das pessoas que se identificam como trans não apenas representem zero ameaça para outros, mas são vulneráveis pelos motivos que escrevi. Pessoas trans precisam e merecem proteção. Como as mulheres, são mais suscetíveis a serem assassinada por parceiros sexuais. Mulheres trans que trabalham na indústria do sexo, particularmente mulheres trans de cor, são um risco em particular. Assim como qualquer outro sobrevivente de abuso doméstico e sexual que conheço, sinto empatia e solidariedade com mulheres trans que foram abusadas por homens.

Então, eu quero que as mulheres trans sejam protegidas. Do mesmo modo, não quero que garotas e mulheres [cisgênero] fiquem menos seguras. Quando você abre as portas dos banheiros e provadores para qualquer homem que acredita ou que se sente como uma mulher – como eu disse, certificados de confirmação de gênero podem ser entregues sem qualquer necessidade de cirurgia ou hormônios -, então você abre as portas para qualquer homem que queira entrar. É a mais pura verdade.

No sábado de manhã, li que o governo escocês está seguindo em frente com seus controversos planos de reconhecimento de gênero, que irão, no geral, significar que tudo do que um homem precisa para ‘se tornar uma mulher’ é dizer que é uma. Para usar uma palavra bastante contemporânea, fui ‘engatilhada’. Presa por ataques impiedosos de ativistas trans nas redes sociais, quando estava apenas tentando dar um feedback para as crianças sobre as imagens que fizeram para meu livro durante a quarentena, eu passei a manhã do sábado em um lugar bastante conturbado na minha cabeça, conforme memórias sobre abusos sexuais que sofri em meus vinte e poucos anos voltavam constantemente. O abuso aconteceu em um lugar e em uma época de pura vulnerabilidade, e um homem se aproveitou da oportunidade. Não consegui me livrar dessas memórias e vi o quão difícil era conter minha raiva e decepção acerca do modo que meu governo está brincando com a segurança das mulheres e das garotas.

Na noite de sábado, olhando as imagens das crianças antes de ir para a cama, esqueci a primeira regra do Twitter – nunca, nunca esperar uma conversa com nuances – e reagi acerca do que senti ser uma linguagem degradante sobre as mulheres. Falei sobre a importância do sexo, e venho pagando o preço desde então. Eu fui transfóbica, fui uma puta, fui uma vadia, uma TERF, eu mereci ser cancelada, apanhar e morrer. ‘Você o próprio Voldemort’, disse uma pessoa, claramente sentindo que essa seria a única linguagem que entenderia.

Seria muito mais fácil tuitar as hashtags aprovadas – porque é claro que os direitos trans são direitos humanos e é claro que vidas trans importam. Há felicidade, alívio e segurança na conformidade. Como Simone de Beauvoir também escreveu, ‘… sem dúvida é mais confortável aguentar uma servidão cega do que trabalhar para a libertação de alguém; os mortos, também, são bem melhor vestidos na Terra do que os vivos’.

Números exorbitantes de mulheres são justificavelmente aterrorizadas pelos ativistas trans; sei disso, porque várias entraram em contato comigo para contar suas histórias. Elas estão com medo de doxxing, de perder seus empregos e meios de subsistência e da violência.

Mas infinitamente desagradável que seja esse alvejamento sobre mim, eu me recuso a abaixar a cabeça para um movimento que acredito que está causando demonstráveis ações para erodir ‘mulher’ como uma classe política e biológica, e oferecendo refúgio para predadores como alguns antes disso. Eu me coloco ao lado de homens e mulheres, gays, héteros e trans, que estão unidos pela liberdade de expressão e pensamento, e pelos direitos e pela segurança dos mais vulneráveis em nossa sociedade: jovens gays, adolescentes frágeis e mulheres que se respaldam em seus espaços de sexo. Votações mostram que essas mulheres são a grande maioria, e excluir apenas os privilegiados e sortudos de nunca terem enfrentando violência sexual dos homens, e que nunca se importaram em se reeducar o quão prevalente é.

A única coisa que me dá esperança é que as mulheres que podem protestar e se organizar estão fazendo isso, e elas têm alguns homens decentes e pessoas trans ao lado delas. Partidos políticos que tentam acalmar as vozes mais altas nesse debate estão ignorando as preocupações das mulheres sobre seus riscos. No Reino Unido, mulheres estão se unindo de lados opostos da mesma moeda, preocupadas sobre a erosão de seus direitos e a intimidação generalizada. Nenhuma das mulheres com as quais conversei odeia pessoas trans; pelo contrário. Muitas delas começaram a se interessar nesses temas por causa da juventude trans, e são bastante compreensivas acerca de adultos trans que querem apenas viver suas vidas, mas estão enfrentando backlash de um tipo de ativismo com o qual não concordam. A ironia suprema é que a tentativa de silenciar as mulheres com a palavra ‘TERF’ podem ter levado mais mulheres jovens em direção ao feminismo radical do que o movimento viu nas últimas décadas.

A última coisa que queria dizer é essa. Eu não escrevi esse artigo na esperança de que alguém toque um violino para mim, nem mesmo um pequenininho. Sou extraordinariamente afortunada; sou uma sobrevivente, certamente não uma vitima. Mencionei meu passado apenas porque, assim com qualquer outro ser humano no planeta, tenho uma história completa, que molda meus medos, meus interesses e minhas opiniões. Nunca esqueço a complexidade interior quando crio um personagem ficcional e eu certamente nunca esquecerei quando falamos de pessoas trans.

Tudo o que peço – tudo o que quero – é uma empatia similar, um entendimento similar, que seja expandido para as milhões de mulheres cujo único crime foi querer que suas preocupações fossem ouvidas, sem receber ameaças e abusos”.

Através do site The Trevor Project, que representa uma organização sem fins lucrativos com o objetivo de informar e prevenir o suicídio entre jovens LGBTs, o ator Daniel Radcliffe rebateu os comentários transfóbicos que Rowling fez no Twitter, ressaltando a importância de defender e apoiar a comunidade trans.

“Eu percebi que certos portais de notícias provavelmente irão querer indicar uma briga entre eu e a J.K. Rowling, mas esse não é o caso e nem é importante no momento. Enquanto ela é responsável pelos rumos que a minha vida tomou, eu, que tenho sido honrado em trabalhar com o Projeto Trevor na última década, sinto que devo dizer algo. Mulheres transgênero são mulheres. Qualquer declaração contrária a isso apaga a identidade e dignidade das pessoas trans e vai contra o indicado pelos profissionais da saúde que têm muito mais domínio no assunto do que eu e a J.K. Rowling. De acordo com o The Trevor Project, 78% de pessoas transgêneros e não-binárias são discriminadas por causa de sua identidade de gênero. Nós precisamos fazer mais para apoiar essas pessoas, não invalidar suas identidades e não causar mais mal a elas.”

Essa não é a primeira vez que Rowling se envolve em polêmicas do tipo. E apesar de afirmar que não é contra a liberdade de gênero, ela já admitiu que é leitora de sites anti-trans.

Há alguns anos, ela também foi duramente criticada por compartilhar trechos de entrevistas tentando minimizar a luta da comunidade transgênero.

A atriz Emma Watson, que interpretou Hermione Granger em todos os oito filmes da série ‘Harry Potter‘, veio a publico defender as pessoas trans.

“As pessoas trans são o que dizem ser e merecem viver suas vidas sem serem constantemente questionadas ou informadas de que não são quem dizem ser. Quero que meus seguidores trans saibam que eu e tantas outras pessoas ao redor do mundo te vemos, te respeitamos e te amamos por quem você é.”

 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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“Essa decisão não foi fácil de ser tomada e estamos tristes e desapontados por termos chegado a esse ponto”, diz o comunicado oficial, assinado por Drew Davies, Ugla Stefanía KristjonudottirFox Fisher e um quarto nome não identificado. “Após os comentários de J.K. Rowling sobre questões de transgêneros, contatamos a agência com um convite para reafirmar a posição favorável à comunidade. Após a conversa, tivemos a sensação de que eles eram incapazes de se comprometer com ações apropriadas e significativas. […] Somos solidários com a comunidade LGBTQ+ em todas as áreas de publicação que trabalham para defender diversas vozes e experiências para colocar em xeque a homogeneidade da indústria”.

Recentemente, Rowling publicou uma carta aberta defendendo seus comentários e seu ponto de vista.

Confira, na íntegra:

“Essa não é uma carta fácil de escrever, por razões que logo se mostrarão claras, mas sei que é momento de me explicar acerca de um tema cercado de toxicidade. Eu escrevi isso sem qualquer intenção de acrescentar mais toxicidade.

Para as pessoas que não sabem: em dezembro do ano passado, fiz um tuíte em apoio a Maya Forstater, uma especialista em impostos que havia perdido seu trabalho por postagens ‘transfóbicas’. Ela levou seu caso para um tribunal trabalhista, pedindo para que o juiz julgasse se uma crença filosófica que sexo é determinado pela biologia é protegido pela lei. O Juiz Taylor disse que não.

Meu interesse em temas trans é pré-datado ao caso de Maya por quase dois anos, durante o qual acompanhei os debates sobre conceitos de identidade de gênero de perto. Conheci pessoas trans, li vários livros, blogs, artigos de pessoas trans, especialistas de gênero, pessoas interssexuais, psicólogos, especialistas, trabalhadores sociais e doutores, e segui o discurso online e em mídia tradicional. Em certo nível, meu interesse nesse tema tem sido profissional, pois estou escrevendo uma série criminal, ambientada nos dias de hoje, e minha detetive protagonista é de uma idade que se interessa e que é afetada por isso; mas em um nível pessoal também, como irei explicar.

Durante todo o tempo que vim pesquisando e aprendendo, acusações e ameaças de ativistas trans começaram a aparecer em meu Twitter. Tudo isso foi engatilhado por uma ‘curtida’. Quando comecei a me interessar em identidade de gênero e discussões transgêneras, comecei a tirar fotos de comentários que me interessavam, como modo de me lembrar o que deveria pesquisar mais tarde. Em uma ocasião, eu, sem percebi, apertei o botão de ‘curtir’ em vez de tirar uma foto. Aquela única ‘curtida’ foi evidência de pensamentos errôneos e um persistente baixo nível de assédio começou.

Meses depois, eu aumentei meu crime ao seguir Magdalen Burns no Twitter. Madgalen foi uma jovem e corajosa feminista e lésbica que estava morrendo em virtude de um tumor cerebral. Eu a segui porque gostaria de entrar em contato com ela diretamente, o que consegui. Entretanto, visto que Magdalen foi uma grande credora da importância do sexo biológico e não acreditava que lésbicas deveriam ser chamadas de fanáticas por não namorarem mulheres trans com pênis, os pontos se juntaram nas cabeças das ativistas trans, e o nível de abuso social aumentou.

Eu menciono tudo isso apenas para explicar que eu sabia perfeitamente o que iria acontecer quando eu apoiei Maya. Eu deveria estar no meu quarto ou quinto cancelamento na época. Eu esperava as ameaças de violência, que me diriam que eu ‘estava literalmente matando pessoas trans com meu ódio’, de ser chamada de vadia e, é claro, por meus livros serem chamados, apesar de um homem particularmente abusivo me disse que iria compostá-los.

O que eu não esperava, nas consequências do meu cancelamento, era uma avalanche de e-mails e cartas que choveram em mim, a maioria das respostas positivas, agradecidas e apoiadoras. Eles vieram de uma seção de pessoas gentis, empáticas e inteligentes, algumas trabalhando em campos que lidavam com disforia de gênero e pessoas trans, com preocupações profundas sobre o modo que os conceitos sociopolíticos estão influenciando a política, as práticas médicas e salvaguardas. Eles estão preocupados sobre os perigos para as pessoas jovens, gays e sobre a erosão de direitos de mulheres e garotas. Acima de tudo, estão preocupados sobre um clima de medo que não fará bem a ninguém – principalmente a juventude trans.

Eu havia me afastado do Twitter por vários meses tanto antes quanto depois de tweetar em apoio a Maya, porque eu sabia que não estava fazendo bem para minha saúde mental. Eu apenas retornei, porque queria compartilhar um livro infantil gratuito durante a pandemia. Imediatamente, ativistas que claramente acreditam ser bons, progressistas e gentis, assolaram minha timeline, acreditando no direito de policiar meu discurso, me acusar de ódio, me chamar de misoginia, me insultar e, acima de tudo – como qualquer mulher envolvida nesse debate saberá -, de TERF.

Se você não sabia – e por que deveria? -, ‘TERF’ é um acrônimo criado por ativistas trans que significa Feministas Radicais Trans-Excludentes. Na prática, uma seção considerável e diversa de mulheres estava sendo chamada de TERFs e a grande maioria nunca nem foram feministas radicais. Exemplos das chamadas TERFs variam da mãe de um jovem gay que estava com medo de que seu filho quisesse fazer a transição para escapar do preconceito homofóbico, para uma idosa histérica anti-feminista que jurou nunca mais voltar ao Marks & Spencer porque estavam permitindo que qualquer homem que se identificava como mulher entrar no provador feminino. Ironicamente, feministas radicais nem ao menos são trans-excludentes – elas incluem homens trans em seu feminismo, porque nasceram mulheres.

Mas essas acusações foram o bastante para intimidar muitas pessoas, instituições e organizações que outrora admirava, que se acovardaram ante a táticas infantiloides. ‘Eles irão nos chamar de transfóbicos!’. ‘Eles irão dizer que eu odeio pessoas trans!’. E depois, vão dizer que têm pulgas? Falando como uma mulher biológica, várias pessoas em posições de poder realmente precisam criar coragem”. [aqui, Rowling faz uma piada de mal gosto com a expressão “grow a pair”, dizendo que “é algo literalmente possível, de acordo com as pessoas que dizem que peixes-palhaço provam que humanos não são uma espécie dismórfica”.]

“Então por que estou fazendo isso? Por que falar? Por que não fazer minha pesquisa quietamente e manter minha cabeça abaixada?

Bom, eu tenho cinco razões em ficar preocupada com esse novo ativismo trans, e decidi que preciso falar.

Primeiramente, eu tenho um fundo de caridade focado em aliviar de privações sociais na Escócia, com ênfase em particular em mulheres e crianças. Dentre outras coisas, meu fundo apoia projetos para prisioneiras e para sobreviventes de abusos sexual e doméstico. Eu também financio pesquisas médicas sobre esclerose múltipla que se comporta de maneiras diferentes em homens e mulheres. Ficou claro para mim, há algum tempo, que o novo ativismo trans está tendo (ou deve ter, se todas as demandas forem atendidas) um impacto em várias das causas que apoio, porque está forçando uma erosão da definição legal de sexo e substituindo-o por gênero.

A segunda razão é que sou uma ex-professora e a fundadora de uma caridade para crianças, o que me dá interesse tanto em educação quanto em segurança. Assim como vários, eu tenho preocupações sobre os efeitos do movimento trans em ambos.

A terceira é que, por mais que seja uma autora banida, estou interessada em liberdade de expressão e tenho defendendo-a publicamente, mesmo no tocante a Donald Trump.

A quarta é onde as coisas começam a ficar pessoais. Estou preocupada sobre essa gigantesca explosão em mulheres jovens que querem fazer a transição e também sobre os números crescentes daqueles que des-transicionam (retornam para seu sexo original), porque se arrependem de ter feito algo que, em alguns casos, alteraram seus corpos irrevogavelmente, e tirado sua fertilidade. Alguns dizem que eles decidem transicionar depois de perceberem que têm atração pelo mesmo sexo, e que transicionar é parte movida pela homofobia, seja pela sociedade ou pela família.

A maioria das pessoas provavelmente não estão cientes – eu certamente não estava, até começar a pesquisar sobre isso – que, dez anos atrás, a maioria das pessoas querendo transicionar para o sexo oposto eram homens. A taxa agora foi revertida. O Reino Unido teve um aumento de 4400% de garotas desejando fazer o tratamento. Garotas autistas são fortemente representadas nesses números.

O mesmo fenômeno foi visto nos Estados Unidos. Em 2018, a pesquisadora e médica Lisa Littman foi explorar mais sobre isso. Numa entrevista, ela disse:

‘Pais online estavam descrevendo um padrão bastante incomum de identificação transgênera, na qual vários amigos e até mesmo grupos inteiros de amigos se identificavam como transgêneros ao mesmo tempo. Eu estaria errada se não considerasse contágio social e influências como fatores potenciais’.

Littman mencionou o Tumblr, o Reddit, o Instagram e o YouTube como fatores contribuintes para a Rápida Disforia de Gênero, na qual acredita que, no âmbito da identificação transgênera, ‘a juventude veio crescendo particularmente através de câmaras de eco’.

Seu artigo causou um furor. Ela foi acusada de viés ideológico e de espalhar informações falsas sobre pessoas transgênero, sujeita a um tsunami de abusos e uma campanha para descreditar tanto ela quanto seu trabalho. A revista tirou o artigo da internet e o reviu antes de republicá-o. Entretanto, sua carreira teve uma queda similar à sofrida por Maya Forstater. Lisa Littman ousou desafiar um dos pilares do ativismo trans, que é a concepção de identidade de gênero como inata, assim como a orientação sexual. Ninguém, os ativistas insistiram, poderia ser persuadido em ser trans. 

O argumento de vários ativistas trans é que, se você não deixar um adolescente com disforia de gênero transicionar, eles irão se matar. Em um artigo explicando o motivo de ter saído de Tavistock (clínica de gênero na Inglaterra), o psiquiatra Marcus Evans declarou que a ideia de crianças se matando caso não pudessem transicionar, não se ‘alinham substancialmente com quaisquer dados ou estudos na área. Nem mesmo se alinham com os casos que encontrei ao longo de décadas como psicoterapeuta’.

Os escritos de um jovem homem trans revelam um grupo de pessoas notavelmente sensíveis e sagazes. Quanto mais lia sobre suas declarações acerca de disforia de gênero, com descrições sobre ansiedade, dissociação, transtornos alimentarem, automutilação e ódio, mais me perguntava se, caso eu nascesse trinta anos mais tarde, eu também iria transicionar. A tentação de escapar da feminilidade seria grande. Eu lidei com um severo TOC quando adolescente. Se eu tivesse encontrado uma comunidade online que não conseguia encontrar em meu ambiente imediato, eu acredito que seria persuadida em me transformar no filho de meu pai que ele abertamente dizia que teria preferido.

Quando leio sobre a teoria de identidade de gênero, me lembro o quão mentalmente sem sexo eu me sentia. Eu lembrava das descrições de Colette sobre ser uma ‘hermafrodita mental’, e as palavras de Simone de Beauvoir: ‘é perfeitamente natural para a mulher do futuro se sentir indignada com as limitações impostas sobre seu sexo. A verdadeira questão não é se ela deve rejeitá-los, mas sim entender o motivo de aceitá-los’.

Visto que não tinha uma possibilidade realística de me tornar homem nos anos 1980, foram os livros e a música que me ajudaram a lidar com problemas de saúde mental e escrutínio sexual e julgamento que coloca várias garotas contra seus corpos quando adolescentes. Felizmente, para mim, encontrei meu próprio senso de alteridade, e minha ambivalência sobre ser uma mulher, refletida no trabalho de escritoras mulheres e musicistas que me garantiram que, apesar de tudo o que um mundo sexista tenta falar sobre o corpo feminino, não há problema em não se sentir compatível dentro de sua cabeça; não há problema em se sentir confusa, na escuridão, sexual ou não-sexualmente incerta de quem ou do que você é.

Eu quero ser bastante clara aqui: sei que transicionar será uma solução para alguns casos de disforia de gênero, ainda que eu esteja clara, através de uma extensa pesquisa, que estudos mostraram consistentemente que entre 60% e 90% de adolescentes com disforia de gênero irão crescer fora de sua disforia. De novo, me pediram para ‘apenas conhecer algumas pessoas trans’. Eu fiz isso: além de conhecer vários jovens, todos adoráveis, conheço uma mulher que se descreve como transsexual que é mas velha que eu e maravilhosa. Apesar de ser aberta sobre seu passado como um homem gay, eu sempre achei difícil pensar como ela como qualquer pessoa além de uma mulher, e acredito (e espero) que ela esteja feliz por ter transicionado. Ser mais velha, entretanto, a fez passar por um processo longo e rigoroso de avaliação, psicoterapia e transformação por etapas. A explosão atual do ativismo trans está urgindo por uma remoção de quase todos os sistemas robustos, através dos quais os candidatos a reatribuição de gênero devem passar. Um homem que não pretende passar por cirurgia e não tomar hormônios pode garantir a si mesmo um Certificado de Reconhecimento de Gênero e ser uma mulher respaldada pela lei. Muitas pessoas não têm ciência disso.

Estamos vivendo no período mais misógino que já presenciei. Nos anos 1980, eu imaginava que minhas filhas futuras caso eu tivesse alguma, teriam muito mais do que eu tive, mas entre o backlash feminista e uma cultura saturada de pornografia, acredito que as coisas ficaram piores. Nunca vi uma mulher denegrida e desumanizada como vejo hoje. Do líder de um mundo livre com uma triste história de assédio sexual e seu orgulho em dizer ‘pegá-las pela vagina’, até o movimento dos celibatários involuntários que se volta contra as mulheres que não vão transar com eles, para as ativistas trans que declaram que TERFs merecem apanhar e serem re-educadas, homens nesse espectro político parecem concordar: mulheres estão pedindo por problemas. Em todo lugar, mulheres estão sendo mandadas para calar a boca e sentar.

Eu li todos os argumentos sobre feminilidade não residir no corpo sexual, e as asserções que mulheres biológicas não têm experiências comuns, e eu os vejo, também, como profundamente misóginos e retrógrados. É claro também que um dos objetivos de negar a importância do sexo é erodir que o que alguns parecem enxergar como uma ideia segregacionista e cruel de que as mulheres têm suas próprias realidades biológicas ou – ameaçador do mesmo jeito – realidade unificadoras que as transformam em uma classe política coesa. As centenas de e-mails que recebi nos últimos dias prova que essa erosão preocupa vários outros. Não é o bastante para mulheres serem aliadas ao movimento trans. Mulheres devem aceitar e admitir que não há diferenças entre elas e as mulheres trans.

Mas várias mulheres me disseram antes que ‘mulher’ não é uma fantasia. ‘Mulher’ não é uma ideia na mente de um homem. ‘Mulher’ não é um cérebro cor de rosa, um receptáculo de Jimmy Choos ou qualquer das outras ideias sexistas que agora são ditas como progressistas. Além disso, a linguagem ‘inclusiva’ que chama as mulheres de ‘menstruadoras’ e ‘pessoas com vulvas’ diminui e desumaniza tantas mulheres do mesmo modo. Eu entendo o motivo das ativistas trans considerarem essa linguagem apropriada e gentil, mas para nós que fomos humilhadas por homens violentos, não é neutro, é hostil e alienável.

O que me traz para a quinta razão pela qual estou profundamente preocupada com as consequências do atual ativismo trans.

Estive no olho público por quase vinte anos e nunca falei publicamente sobre ser abusada doméstica e sexualmente. Não é por que tenho vergonha do que aconteceu a mim, mas sim porque é traumático revisitar e relembrar. Eu também me sinto protetora sobe minha filha do primeiro casamento. Não queria custódia completa de uma história que pertence a ela, também. Entretanto, um tempo atrás, eu a perguntei como ela se sentiria caso fosse a público falar sobre essa parte da minha vida, e ela me encorajou a seguir em frente.

Estou mencionando essas coisas agora não numa tentativa de gerar empatia, mas sim de solidariedade quanto ao número gigante de mulheres que têm histórias como a minha, que foram chamadas de intolerantes por tem preocupações sobre espaços de um sexo apenas.

Eu consegui escapar do meu primeiro casamento violento com certa dificuldade, mas agora estou casa com um homem bom e com princípios, segura e protegida de modos que não imaginava nem em um milhão de anos. Entretanto, as cicatrizes deixadas pela violência e pelo abuso sexual não desaparecem, não importa o quão amada você seja, e não importa o quanto de dinheiro você tenha. Meu nervosismo perene é uma piada familiar – e até eu sei que é engraçada -, mas rezo que minhas filhas nunca tenham as mesmas razões que tenho de odiar barulhos altos, ou ser surpreendida por pessoas atrás de mim.

Se você pudesse entrar em minha cabeça e compreender o que eu sinto quando leio sobre uma mulher trans morrendo nas mãos de um homem violento, encontraria solidariedade e afinidade. Eu tive uma sensação visceral do terror pelo qual essas mulheres trans passaram os últimos segundos na Terra, porque tive momentos do mais puro e cego medo, quando percebi que a única coisa me mantendo viva era a hesitação do meu agressor.

Acredito que a maioria das pessoas que se identificam como trans não apenas representem zero ameaça para outros, mas são vulneráveis pelos motivos que escrevi. Pessoas trans precisam e merecem proteção. Como as mulheres, são mais suscetíveis a serem assassinada por parceiros sexuais. Mulheres trans que trabalham na indústria do sexo, particularmente mulheres trans de cor, são um risco em particular. Assim como qualquer outro sobrevivente de abuso doméstico e sexual que conheço, sinto empatia e solidariedade com mulheres trans que foram abusadas por homens.

Então, eu quero que as mulheres trans sejam protegidas. Do mesmo modo, não quero que garotas e mulheres [cisgênero] fiquem menos seguras. Quando você abre as portas dos banheiros e provadores para qualquer homem que acredita ou que se sente como uma mulher – como eu disse, certificados de confirmação de gênero podem ser entregues sem qualquer necessidade de cirurgia ou hormônios -, então você abre as portas para qualquer homem que queira entrar. É a mais pura verdade.

No sábado de manhã, li que o governo escocês está seguindo em frente com seus controversos planos de reconhecimento de gênero, que irão, no geral, significar que tudo do que um homem precisa para ‘se tornar uma mulher’ é dizer que é uma. Para usar uma palavra bastante contemporânea, fui ‘engatilhada’. Presa por ataques impiedosos de ativistas trans nas redes sociais, quando estava apenas tentando dar um feedback para as crianças sobre as imagens que fizeram para meu livro durante a quarentena, eu passei a manhã do sábado em um lugar bastante conturbado na minha cabeça, conforme memórias sobre abusos sexuais que sofri em meus vinte e poucos anos voltavam constantemente. O abuso aconteceu em um lugar e em uma época de pura vulnerabilidade, e um homem se aproveitou da oportunidade. Não consegui me livrar dessas memórias e vi o quão difícil era conter minha raiva e decepção acerca do modo que meu governo está brincando com a segurança das mulheres e das garotas.

Na noite de sábado, olhando as imagens das crianças antes de ir para a cama, esqueci a primeira regra do Twitter – nunca, nunca esperar uma conversa com nuances – e reagi acerca do que senti ser uma linguagem degradante sobre as mulheres. Falei sobre a importância do sexo, e venho pagando o preço desde então. Eu fui transfóbica, fui uma puta, fui uma vadia, uma TERF, eu mereci ser cancelada, apanhar e morrer. ‘Você o próprio Voldemort’, disse uma pessoa, claramente sentindo que essa seria a única linguagem que entenderia.

Seria muito mais fácil tuitar as hashtags aprovadas – porque é claro que os direitos trans são direitos humanos e é claro que vidas trans importam. Há felicidade, alívio e segurança na conformidade. Como Simone de Beauvoir também escreveu, ‘… sem dúvida é mais confortável aguentar uma servidão cega do que trabalhar para a libertação de alguém; os mortos, também, são bem melhor vestidos na Terra do que os vivos’.

Números exorbitantes de mulheres são justificavelmente aterrorizadas pelos ativistas trans; sei disso, porque várias entraram em contato comigo para contar suas histórias. Elas estão com medo de doxxing, de perder seus empregos e meios de subsistência e da violência.

Mas infinitamente desagradável que seja esse alvejamento sobre mim, eu me recuso a abaixar a cabeça para um movimento que acredito que está causando demonstráveis ações para erodir ‘mulher’ como uma classe política e biológica, e oferecendo refúgio para predadores como alguns antes disso. Eu me coloco ao lado de homens e mulheres, gays, héteros e trans, que estão unidos pela liberdade de expressão e pensamento, e pelos direitos e pela segurança dos mais vulneráveis em nossa sociedade: jovens gays, adolescentes frágeis e mulheres que se respaldam em seus espaços de sexo. Votações mostram que essas mulheres são a grande maioria, e excluir apenas os privilegiados e sortudos de nunca terem enfrentando violência sexual dos homens, e que nunca se importaram em se reeducar o quão prevalente é.

A única coisa que me dá esperança é que as mulheres que podem protestar e se organizar estão fazendo isso, e elas têm alguns homens decentes e pessoas trans ao lado delas. Partidos políticos que tentam acalmar as vozes mais altas nesse debate estão ignorando as preocupações das mulheres sobre seus riscos. No Reino Unido, mulheres estão se unindo de lados opostos da mesma moeda, preocupadas sobre a erosão de seus direitos e a intimidação generalizada. Nenhuma das mulheres com as quais conversei odeia pessoas trans; pelo contrário. Muitas delas começaram a se interessar nesses temas por causa da juventude trans, e são bastante compreensivas acerca de adultos trans que querem apenas viver suas vidas, mas estão enfrentando backlash de um tipo de ativismo com o qual não concordam. A ironia suprema é que a tentativa de silenciar as mulheres com a palavra ‘TERF’ podem ter levado mais mulheres jovens em direção ao feminismo radical do que o movimento viu nas últimas décadas.

A última coisa que queria dizer é essa. Eu não escrevi esse artigo na esperança de que alguém toque um violino para mim, nem mesmo um pequenininho. Sou extraordinariamente afortunada; sou uma sobrevivente, certamente não uma vitima. Mencionei meu passado apenas porque, assim com qualquer outro ser humano no planeta, tenho uma história completa, que molda meus medos, meus interesses e minhas opiniões. Nunca esqueço a complexidade interior quando crio um personagem ficcional e eu certamente nunca esquecerei quando falamos de pessoas trans.

Tudo o que peço – tudo o que quero – é uma empatia similar, um entendimento similar, que seja expandido para as milhões de mulheres cujo único crime foi querer que suas preocupações fossem ouvidas, sem receber ameaças e abusos”.

Através do site The Trevor Project, que representa uma organização sem fins lucrativos com o objetivo de informar e prevenir o suicídio entre jovens LGBTs, o ator Daniel Radcliffe rebateu os comentários transfóbicos que Rowling fez no Twitter, ressaltando a importância de defender e apoiar a comunidade trans.

“Eu percebi que certos portais de notícias provavelmente irão querer indicar uma briga entre eu e a J.K. Rowling, mas esse não é o caso e nem é importante no momento. Enquanto ela é responsável pelos rumos que a minha vida tomou, eu, que tenho sido honrado em trabalhar com o Projeto Trevor na última década, sinto que devo dizer algo. Mulheres transgênero são mulheres. Qualquer declaração contrária a isso apaga a identidade e dignidade das pessoas trans e vai contra o indicado pelos profissionais da saúde que têm muito mais domínio no assunto do que eu e a J.K. Rowling. De acordo com o The Trevor Project, 78% de pessoas transgêneros e não-binárias são discriminadas por causa de sua identidade de gênero. Nós precisamos fazer mais para apoiar essas pessoas, não invalidar suas identidades e não causar mais mal a elas.”

Essa não é a primeira vez que Rowling se envolve em polêmicas do tipo. E apesar de afirmar que não é contra a liberdade de gênero, ela já admitiu que é leitora de sites anti-trans.

Há alguns anos, ela também foi duramente criticada por compartilhar trechos de entrevistas tentando minimizar a luta da comunidade transgênero.

A atriz Emma Watson, que interpretou Hermione Granger em todos os oito filmes da série ‘Harry Potter‘, veio a publico defender as pessoas trans.

“As pessoas trans são o que dizem ser e merecem viver suas vidas sem serem constantemente questionadas ou informadas de que não são quem dizem ser. Quero que meus seguidores trans saibam que eu e tantas outras pessoas ao redor do mundo te vemos, te respeitamos e te amamos por quem você é.”

 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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