Caricato, irreverente e peculiar. Com seu uniforme desajeitado que evidenciava uma forma física despreparada – embora esguia -, ‘Batman’ fez sua estreia nas televisões norte-americanas em 1966. Com sua chegada ao Brasil pela TV Cultura tardiamente, cinco anos após o seu cancelamento, a série marcou gerações do passado, trazendo vestígios do seu ar vanguardista que até hoje influenciam as produções que adaptam os quadrinhos para a TV ou para o cinema.
Mas o ‘Batman’ de Adam West não foi o pontapé inicial do gênero no entretenimento na TV. Antes dele vieram dois outros. George Reeves usou a famigerada cueca sobre as calças em uma produção que conquistou os fãs do inimaginável na época. Em 1952, era onde a tecnologia revolucionária existia apenas como um vislumbre da ficção científica das histórias impressas em revistinhas, ‘Adventures of Superman’ estreou. Aquém do que veríamos nas personificação impressionante de Christopher Reeve – que já contava com ferramentas tecnológicas superiores, mas ainda assim uma surpresa heróica sete anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
Símbolos do heroísmo americano e gatilhos socioculturais na construção do discurso da guerra, os primeiros heróis se consolidaram em tempos adversos e se imortalizaram com o crescimento da indústria da cultura POP. Enquanto Batman trazia o alter-ego sem super poderes, um homem “comum” que poderia ser herói em 1939, Capitão América foi o ícone impulsionador do espírito bélico em 1941. Ufanista, ele é o genuíno marco zero da migração dos quadrinhos para a TV. Em uma série que contou com 15 capítulos, Dick Purcell viveu o herói em 1944, em tons de preto e branco. Morto por insuficiência cardíaca cinco meses após o fim das filmagens da produção, poucos se lembram da série, mas devemos muito a ele e esses outros ousados ímpetos espaçados, que abriram caminho para o universo que vivemos hoje.
Mexer com quadrinhos no cinema e na TV contava com o desafio inerente do possível. Ainda que produções como ‘Mulher-Maravilha’ (1975-1979) e o filme para televisão de ‘Os Vingadores’ (1978) usassem artimanhas criativas para criar a sensação semelhante ao nosso imaginário fortalecido pelos quadrinhos, a tecnologia era um problema. E foi justamente por isso que o primeiro longa de ‘Superman’, de Richard Donner, ganhou um Oscar especial. Os voos mirabolantes e reais e o capricho em sua produção romperam com as barreiras desse mundo tão desafiador. E hoje, 39 anos desde seu emblemático lançamento, nos consumimos pela chegada de ‘Liga da Justiça’. Contamos os dias para a estreia de ‘Deadpool 2’. Esperamos impacientemente todas as produções dos calendários da Marvel, DC e Sony. Ficamos inconformados e confusos com o reset do DCEU. Pautamos nosso tempo livre com as estreias do cinema.
De ‘Capitão América’ (1944) pra cá, 43 séries de TV baseadas nos quadrinhos de super-heróis já foram produzidas. 17 estão no ar e duas estreiam até o fim do ano – ‘O Justiceiro’ e ‘Runaways’. Nas telonas, 78 filmes já foram lançados (contando com o mais recente, ‘Liga da Justiça’) e nove ainda serão até 2020. Um horizonte revigorante e ainda desbravador, a cultura POP mostrou ao mundo que POP é tão cultural quanto o cult e que existe um mar de possibilidades para oferecer a partir dessa vertente, que abrange um leque diversificado de personagens habilidosos, incomuns e identificáveis.
Consolidado graças ao amor irredutível dos fãs, que cresceram lendo histórias em quadrinhos e passaram a tradição aos seus filhos, que cresceram assistindo animações como as de ‘X-Men’ e ‘Super Amigos’ – e hoje encaram as filas de grandes pré-estreias, é fácil dizer que vivemos uma nova era. Do quartinho iluminado por uma luminária direcionada para uma história blocada em quadros bem desenhados para o hall seleto das produções mais disputadas por atores e fãs, as HQs ganharam vida para além do imaginário infantil e jovem e hoje pautam o que eu, você e o resto do mundo estará consumido pelos próximos meses. Ou anos.
Fã ou não de HQs e suas respectivas adaptações, é fato que sua migração para o cinema e para TV inaugurou um novo conceito de absorção cultural, que cerca a todos nós. Sejam os lançamentos de coleções cápsulas de T-shirts às vésperas da estreia de um novo filme ou a construção de roteiros pautados pela opinião pública (vide ‘Deadpool’), uma nova trilha do que simboliza ser cool ou descolado se entremeia com o curso ainda percorrido por essas produções. De um gênero que patinou um pouco para se consolidar e hoje impera com uma média de seis produções por ano nos cinemas, filmes e séries baseados nos quadrinhos de heróis são as grandes motivações para a coqueluche de eventos como San Diego Comic-Con e seus inúmeros sucessores. Esta, que teve sua primeira edição em 1970, foi de um cantinho confortável para troca de figurinhas e revistinhas para o maior evento de cultura POP do mundo.
Com a reinvenção constante do próprio estilo das histórias em quadrinhos, essa nova época parece ser um poço de produções infindável. Com um início celebrado por heróis que estampavam a bandeira dos Estados Unidos em seus uniformes e emergiram como uma resposta de fácil compreensão para o contexto sociopolítico e econômico vivido no período em questão, as narrativas evoluíram, atraindo o mundo real para si de maneira cada vez mais global. Abordando questionamentos existenciais e a aceitação individual refletida no convívio coletivo, novos personagens surgem, tratando sobre a igualdade de gêneros por uma outra dinâmica, enraizada em excelentes exemplos de emponderamento como ‘Mulher-Maravilha’ e ‘Capitã Marvel’, contextualizada também no ambiente escolar e familiar. Para cada nova página escrita, um novo público é impactado. E nessa história ainda desenhada, há sempre um estúdio, um narrador observador – quase onisciente -, afoito para garantir que ela não seja apenas contada, mas consumida em sua total magnitude.