Em uma perspectiva bastante generalizada, o mundo, desde que é mundo, é apaixonado por histórias do sobrenatural e do impossível. A literatura intimista de Edgar Allan Poe, os contos de terror de H.P. Lovecraft e até mesmo a árdua poesia da desistência de Charles Baudelaire carregam consigo um apreço inefável pelo místico, pelo inexplicável com tamanha diversidade que vieram a influenciar os primeiros despontes desse mesmo gênero nas esferas do entretenimento do audiovisual.
Quando pensamos em “fantasia”, nos lembramos automaticamente de icônicas franquias cinematográficas que inclusive hoje (talvez mais do que nunca, como forma de escape à monótona e cíclica sociedade em que vivemos) permanecem no nosso imaginário: construções como ‘O Senhor dos Anéis’, ‘As Crônicas de Nárnia’ e ‘Harry Potter’, que também nutrem sua versatilidade imagética e narrativa das páginas dos livros, não se tornaram apenas sagas adoradas pelo público, como remodelaram o jeito de arquitetar contos épicos sobre cavaleiros, elfos, bruxos e a eterna batalha entre o bem o mal.
Pois é partindo de tais premissas que a dupla formada por Renée Echevarria e Travis Beacham criou a série neo-noir intitulada ‘Carnival Row’. Aqui, somos transportados para um território chamado Burgo, que drena inspiração da Londres vitoriana do século XIX e abre espaço para a fusão inesperada de diversas criaturas mágicas: não é surpresa que logo de cara sejamos apresentados à Vignette Stonemoss (Cara Delevingne), uma fada que se vê lutando pela vida até desistir de permanecer em seu país natal, Tirnanoc, e se refugiar na terra dos humanos. Entretanto, diferente do que poderíamos imaginar, sua aparente salvação é tratada com descaso pela raça dominante, que desde sempre vem submetendo essas outras criaturas (apelidadas pejorativamente de critch) a um estagnado cárcere sem qualquer prospecto de mudança.
Com um pano de fundo tão político quanto o descrito acima, podemos pensar que o duo de showrunners pode transformar os longos oito episódios em monólogos de ordem crítica, realizando metáforas e alegorias para o mundo real. De fato, Beacham e Echevarria fazem isso ao tratar de temas como racismo, sexismo e preconceito, mas passam longe de qualquer panfletarismo barato: na verdade, ambos trabalham ao lado de uma competente equipe em um roteiro sólido e engajador que se vale tanto de artifícios melodramáticos quanto de reviravoltas surpreendentes para nos relembrar de que estamos assistindo a uma produção de ficção fantástica.
As coisas tomam um rumo mais familiarizado, por assim dizer, quando Vignette se reencontra com sua amiga de longa data, Tourmaline Larou (Karla Crome) e descobre que seu antigo amor ainda está vivo e que ele fugiu para o Burgo para se envolver com as complexas falcatruas do sistema judiciário local. Não demora muito para que descubramos que esse “amor” se chama Rycroft Philostrate (Orlando Bloom) e que ele trabalha como detetive da polícia tentando tornar o conturbado cotidiano dos critch em algo menos ameaçador e mais justo – não que ele consiga, visto que seu poder se limita à visão unidimensional de seus superiores e colegas.
Com as breves introduções do episódio piloto, percebe-se que cada um dos protagonistas está imerso em arcos problemáticos que provavelmente serão base para o decorrer dos outros capítulos. Infelizmente, a série em si nos dá a sensação de que nossos heróis, na verdade, não são a fonte de principal atenção: Bloom e Delevingne, por mais que estejam envolvidos em uma trama romântica e trágica, não despontam qualquer indício de química e acabam ofuscados por tantos outros belos personagens construídos – até mesmo pelas breves aparições da xamã Haruspex (Alice Krige) e da empregada-fauna Afissa (Tracey Wilkinson).
Conforme a história vai se desenrolando, fica claro que a dosagem entre as múltiplas narrativas não é pensada com cautela: além do enlace entre Vignette e Philo, temos também o embate entre duas entidades ideologicamente opostas e lideradas pelo Chanceler Absalom Breakspear (Jared Harris) e Ritter Longerbane (Ronan Vibert), que não entram em acordo acerca da fusão inter-racial entre tantas personas distintas: de um lado, Absalom deseja tem uma mentalidade um pouco mais liberal, mas ainda preso ao complexo de superioridade dos humanos, enquanto Ritter tem em mente um distorcido impulso de limpar e resgatar a perdida glória de sua comunidade – mesmo que isso signifique dar aval a um genocídio em massa.
Isso não é tudo: a batalha também se expande para arcos menos políticos e mais íntimos, como o delineado entre a socialite Imogen Spurnrose (Tamzin Merchant) e o recém-chegado à alta sociedade do Burgo, o fauno Agreus Astrayon (David Gyasi). Em uma perspectiva externa e que acaba por unir todos os protagonistas e coadjuvante, encontramos também o início de um mistério que se assemelha às clássicas histórias de Jack, o Estripador, no momento em que um serial killer (que revela ser um perigoso golem ao qual é atribuído o nome de Darkasher) elimina sumariamente diversos membros da cidade, estripando-os por completo e arrancando-lhes os fígados.
Levando em conta que as iterações tangenciam ou até mesmo ultrapassam a duração de uma hora cada, seria mais que óbvio esperar que o roteiro desse conta de ao menos fornecer uma breve resolução a caminho do season finale. Porém, não é isso que acontece: enquanto algumas tramas recebem atenção maior e dialogam com a necessidade de comoção e reflexão dos telespectadores, outras mais complexas e intrincadas ficam de fora em prol de reviravoltas premeditadas por qualquer um que preste o mínimo de atenção; nem mesmo a revelação de que Philo é um mestiço abandonado pela mãe e pelo pai, ou que os filhos de Longerbane e Breakspear são meios-irmãos são capazes de nos desviar dos múltiplos e quase amadores deslizes.
Eventualmente, Philo também descobre que o golem está atrás dele e que é controlado pela calculista, fria e histérica construção de Piety (Indira Varma), esposa de Absalom, para impedir que a linhagem de sua família seja destruída e que seu reinado seja colocado em xeque. A batalha final entre eles, todavia, é risível e coreografada de forma tão apressada que beira o ridículo: as tentativas de redenção, epifania e ruína imprimidas nos diversos tipos sociais que habitam o Burgo falham em atingir sua completude potencial e deixam um gostinho agridoce do que realmente poderia ter acontecido ou do que poderia ser deixado para as próximas temporadas.
Se a narrativa é falha, ao menos o time por trás da direção de arte faz um trabalho impecável; além da caracterização exímia e exuberante de criaturas mitológicas e outrora restritas e epopeias centralizadas nas declamações greco-romanas, o próprio cenário é pensado com cuidado aplaudível, utilizando-se de uma sórdida melancolia para antecipar as ações duvidosas dos heróis e anti-heróis. Apesar do uso excessivo de elementos propositalmente enfadonhos, como a neblina e a chuva, é inegável o esforço visual no qual a obra reside.
‘Carnival Row’ acaba atirando para todos os lados e, mesmo que suas intenções sejam as mais puras possíveis, não podemos deixar de nos sentir frustrados conforme os últimos segundos do capítulo final se entregam ao fade out. Ainda falta um pouco de consistência para que a série acredite em si mesma e abuse de sua mitologia recriada – e é isso que estaremos esperando para o próximo ciclo.