O maior filme de todos os tempos jamais deixou de ser acurado
Tendo feito sua pré-estreia mundial em Nova York no dia 1º de maio de 1941 (chegando ao Brasil no dia 16 de junho do mesmo ano), Cidadão Kane completa 80 anos em 2021. O clássico imortal nunca saiu da cultura pop, mas parece ter ressurgido com força no ano de seu octogésimo aniversário. Primeiro, pelo hype em torno de Mank, da Netflix – indicado a 10 Oscar e vencedor de duas estatuetas – que fala em partes sobre seus bastidores. Segundo, pela notícia da perda de sua infalibilidade no agregador Rotten Tomatoes para o infantil Paddington 2 (2017) – agora o filme com mais críticas positivas no acervo do site. Se você ainda não assistiu, o longa está disponível na rede Telecine e no streaming do Telecine Play. Você não pode perder.
Dentre os indicados a Melhor Filme no Oscar 2021, em sua maioria abordando temas sociais urgentes, Mank surgiu com uma ideia diferente; prestar homenagem àquele que é considerado o maior filme de todos os tempos: Cidadão Kane. Isso, claro, feito através da ótica de seu roteirista, o problemático Herman Mankiewicz. Ainda assim, assistir ao clássico de 1941 é mergulhar fundo nas concepções que Orson Welles tinha sobre a mídia e aqueles que a controlam.
Em termos gerais a trama segue Charles Foster Kane (vivido pelo próprio Welles), um magnata das comunicações que após falecer tem seu passado transformado em alvo por diversos jornalistas. A pauta é desconstruir o mito em torno de sua persona, assim trazendo algumas respostas para o tipo de homem que ele foi e, mais importante, compreender o significado de suas últimas palavras: Rosebud. Dessa maneira a direção de Welles segue durante toda a projeção em um ritmo variado entre o passado de Kane e o presente com um jornalista incumbido de desvendar o mistério de Rosebud.
Parte da fama de Cidadão Kane se deve às técnicas empregadas pelo diretor que, à época, eram inovadoras; com praticamente nenhum referencial em filmes anteriores. Um dos avanços mais celebrados é a profundidade de foco no qual o diretor consegue expor ao público não só o personagem em questão ou um área limitada ao seu entorno mas também o espaço como um todo, dessa forma não só ampliando o campo de visão para o espectador mas também confiando toda uma nova responsabilidade à equipe de design de produção, que agora poderia inserir no cenário muito mais simbolismo e extensão ao roteiro.
Cidadão Kane também inovou em termos narrativos ao apresentar uma condução de trama que muito se assemelhava a um filme biográfico. Hoje o recurso já é mais do que conhecido do público graças a filmes como O Estranho Caso de Benjamin Button, porém em 1941 essa decisão foi bastante incomum. Por meio dessa decisão, Welles ganha a possibilidade de mostrar diferentes momentos da vida de Kane e como se deu a sua progressão de uma criança feliz para um idoso solitário.
A forma como ele expõe esse trajeto particular do protagonista se dá por meio de flashbacks, geralmente invocados por indivíduos que foram próximos de Kane e estão sendo entrevistados. Porém cada um deles, naturalmente, possui um posicionamento muito firme em relação a ele, sendo positivo ou não. Alguns documentários modernos, principalmente os criminais, usam muito o recurso do flashback de um entrevistado para realizar as transições na progressão da narrativa e apresentar alguma informação nova.
Em 1941, o diretor de fotografia de Cidadão Kane, Gregg Toland, declarou na American Cinematographer que “Cidadão Kane não é de maneira alguma um filme convencional ou medíocre. Sua tônica é o realismo. Enquanto trabalhávamos juntos no roteiro e no planejamento final da pré-produção, tanto Welles quanto eu sentimos isso, e sentimos que, se fosse possível, a imagem deveria ser trazida para a tela de forma que o público sentisse que estava olhando para a realidade, ao invés de meramente para um filme”.
No entanto existe um fator ainda maior do que as conquistas técnicas pelo qual o filme de Welles é conhecido: sua relação conturbada com o magnata William Randolph Hearst. Antes de ter um nome no cinema, Welles teve formação no rádio, estando à frente do bem sucedido programa The Mercury Theatre on the Air pela rádio CBS. O bom desempenho do show lhe garantiu a chance de produzir uma adaptação radiofônica de Guerra dos Mundos baseada no livro de H. G. Wells.
O pânico subsequente causado pela produção nos ouvintes não só é algo lendário como foi um momento em que Welles percebeu o quão poderosos os meios de comunicação, e as pessoas que os controlam, poderiam ser. Aonde a verdade poderia ser o que um radialista ou editor dissesse que era. Apesar de bem-vinda, essa reflexão, para à época, entrava em colisão com a figura de Hearst.
De maneira similar a Kane, Hearst expandiu seu império de comunicação comprando jornais de Nova York e estabeleceu como meta seguinte o início de uma carreira política que nunca avançou muito. Sua interferência nessa mesma política também foi intensa, com os jornais do magnata tendo defendido o envolvimento norte-americano na Guerra Espanhola e o isolacionismo ao início da Segunda Guerra Mundial.
Não acidentalmente as notícias sobre Cidadão Kane despertaram a ira do magnata, que via o projeto como uma biografia não autorizada da sua vida e até mesmo uma difamação. Para conter possíveis estragos do filme de Welles à sua imagem, Hurst utilizou justamente de seu poder midiático para liquidar quaisquer chances de indicações a prêmios ou até uma bilheteria positiva.
Mesmo que nessa ocasião a história tenha tido uma “conclusão” satisfatória (com a produção sendo imortalizada no cinema e Hearst se tornando uma figura esquecida), esse é um capítulo que reforça o poder da comunicação e como, ele estando na mão de uma ou mais pessoas, pode ser usado para diversos fins.