‘Coringa’ é desses filmes que precisa ser debatido e debatido diversas vezes, por inúmeros ângulos, abordando todas as áreas de conhecimento – afinal, ele ultrapassa o campo do entretenimento. O longa de Todd Phillips eclode profundamente muitos sentimentos no espectador, graças à forma como o diretor conseguiu construir a história desse personagem que, para muitos, ultrapassa o vilão do DC Universe. Para nos ajudar a entender como o diretor conseguiu atingir esse objetivo, nós do CinePop conversamos com Maria Caú, que é formada em Cinema, crítica da Abraccine e Doutora em Literatura Comparada pela UFRJ.
Um dos pontos que mais se destaca (apesar de não sentirmos isso até o fim do filme, quando refletimos sobre ele) é como a câmera de Todd Phillips nos aproxima desse personagem, colocando-se sempre próximo a ele. Maria Caú nos explica que “o filme o tempo todo faz você se aproximar do universo mental do Arthur, e ele faz isso com uma variedade de técnicas. Primeiro, se apoiando muito na atuação incrível do Joaquin Phoenix, que é realmente muito impressionante; depois com uma série de planos muito próximos, se aproximando muito dele com a câmera. Mas acho que também tem outros fatores. O Joaquin está em todas as cenas, praticamente. Até mesmo dentro do flashback da mãe dele, ele está. O que nos leva a crer que aquilo faz parte do universo mental dele, é como ele imagina aquele flashback depois que ele lê aqueles documentos. Então, essa junção de técnicas faz você aos poucos meio que tomar parte desse universo mental, o que é uma coisa bem enervante – e isso é uma das coisas legais do filme porque é uma pessoa que está enlouquecendo, é uma pessoa que dissocia, que desconecta da realidade. E você está o tempo todo se aproximando desse universo desconexo. Então, sim, o posicionamento de câmera e os closes têm a ver com isso, mas eu diria que não é só isso. Há filmes que têm muitos closes, mas ainda assim você se mantém a certa distância mental dos personagens. Não é puramente o close que cria isso”.
Outro elemento fundamental não só no filme como na história do Batman como um todo é o papel que a cidade tem na ocorrência das tramas, o quanto ela é a base para os embates do Batman e, neste filme especificamente, no quanto ela vai moldando esse Coringa. A cineasta acha que “o filme resgata uma Nova York – e a gente sabe que Gotham é Nova York, uma versão de Nova York -, mas ele resgata uma Nova York muito dark, muito dura, em que as cores surgem, em contraste com as cores da cidade, mas não é de uma forma solar, não é de uma forma idílica”.
Sabemos que Nova York é uma cidade que já foi muito retratada nos cinemas, mas existe um outro lado, menos romântico da cidade, que parece ter sido esquecido, e que é resgatado no longa de Todd Phillips. Sobre isso, Maria compara como o local já apareceu em trabalhos de outros diretores: “se a gente pegar dois cineastas que tratam de Nova York a obra inteira, tipo o Woody Allen e o Martin Scorsese, que são contemporâneos e trabalharam nos mesmos anos, você vai olhar e pensar ‘gente, não é possível que isso seja a mesma cidade’, porque uma é uma visão de Nova York completamente diferente da outra. Então, é óbvio que esse filme está muito mais próximo da Nova York do Scorsese, e ele faz muita referência a ‘Taxi Driver’, a ‘O rei da comédia’. É uma Nova York dark, uma Nova York mais perigosa. As pessoas não têm muito ideia de como Nova York era perigosa e violenta nos anos 1970 e 80. Hoje em dia é uma cidade muito segura, e as pessoas não têm muito essa noção. Era uma cidade muito suja, muito violenta. É um pouco por esse lado que a cidade constrói o filme”.
Em contraste com essa cidade pesada e opressora, existe o elemento simpático do circo, que não deve ser esquecido – afinal, o Coringa é, antes de tudo, um palhaço. Porém, o tom do filme apresenta um outro lado desse elemento lúdico, fazendo com que o espectador não se sinta confortável ao ver aqueles palhaços maltrapilhos. Sobre esse contraste, a cineasta salienta que “é uma coisa que tem a ver com o universo do circo, mas um lado do circo um pouco grotesco, porque a gente pode ter o circo como a grande coisa da felicidade, a histeria da felicidade, mas também podemos ter o circo – e como muito tempo o foi – historicamente marginalizado na sociedade. A gente tem isso em diversos cineastas, inclusive que mostram o circo dessa forma. O circo como uma coisa meio grotesca, o que está à margem da sociedade. Não é nem bem o circo, mas o circo como ideia. Essas referências ao circo, porque ele não é um artista de circo no filme, mas ele se veste de palhaço, tem aquelas outras pessoas que andam com ele. E o anão está justamente nessa posição da marginalização dos artistas de circo. Por que o anão ficava originalmente no circo antigamente? Porque as pessoas queriam ver o bizarro. As pessoas queriam olhar o anão e apontar para ele, apontar o bizarro. A mulher barbada, que tem aquela doença, hipertricose. Então, são essas pessoas, que estão à margem da sociedade, que ficavam ali para serem exibidas de uma forma grotesca. Então as cores aparecem no filme, mas elas não são tão brilhantes. Elas parecem um pouco mal lavadas, como se elas estivessem sob um véu que amainasse elas”.
Se temos o circo, os palhaços e uma Gotham City escura e sombria, será que dá para enquadrar ‘Coringa’ como um filme de super-herói? Para Maria Caú, o longa vai além: “eu acho que a contribuição é essa, é ser um filme de super-herói, e que faz você discutir várias questões, e que é incômodo dessa forma. Te causa um incômodo porque causa uma discussão, o lugar do indivíduo na sociedade capitalista e o lugar do indivíduo louco né, do indivíduo que dança até com as regras de convenções sociais de racionalidade, o indivíduo que não está nesse espaço. Eu acho isso interessante porque é um filme que atinge um público muito grande. Ele está entrando em todos os estratos, do cinéfilo, do crítico de cinema, do cara que só vê os filmes cults a até o cara que só vê blockbuster. E quando o filme passeia dessa forma eu acho interessante”.
Por abranger diversos públicos e por aprofundar múltiplos temas doloridos na sociedade, ‘Coringa’ tem sido alvo de muitas críticas também – algumas, bem polêmicas. Sobre isso, Maria é pensa que “existe um gosto pela polêmica no momento atual. Eu não acho que esse filme tem uma essência polêmica. Eu acho que ele trata de uma coisa muito simples. É um filme de super-herói; quem diz que não é tá enganado. É um filme que pega lá o gibi. Claro, tem trinta histórias de criação do Coringa. Não é a história da ‘Piada Mortal’. Ele tem um pouco de gibi. Por acaso eu li – gibi, não se deve nem usar essa palavra, né? Graphic Novels. Mas ele é um filme que é isso né. É que pega um público um pouco mais amplo. Como ganhou Veneza, como foi levado ao status artístico, ele saiu dessa seara. E também por ele não ser esse filme blockbuster de orçamento, com muita explosão, e sim ser um filme mais psicológico, ele ficou nesse lugar misto. Todo mundo de repente queria ver o filme. Dos cinéfilos mais cults do Rio de Janeiro, em São Paulo, em Nova York, onde for, até os apaixonados por super-herói, que geralmente veem todos os filmes de super-heróis, que geralmente são produções milionárias, completamente diferentes, que estão em outro lugar. Então, ele juntou todas essas pessoas. Quando o filme passeia assim, geralmente ele gera alguma polêmica no momento atual, porque as pessoas gostam de polêmica, não sei. As pessoas querem ser muito assertivas em suas opiniões. Porque pra mim ele não tem uma natureza polêmica porque quando ele coloca que a sociedade enlouquece, que a sociedade leva uma pessoa que já tem pré-disposição à loucura – e aqui eu uso a palavra loucura de uma forma muito não calculada né, porque loucura é uma ideia guarda-chuva, em que cabe uma série de distúrbios psicológicos, psiquiátricos, alguns dos quais talvez nem sejam distúrbios, mas sejam uma adequação à sociedade capitalista bizarra que a gente vive. Então, o filme, sim, questiona essa sociedade, questiona os valores dessa sociedade. Não só essa coisa do capitalismo, da pressão do sucesso, que é muito própria do capitalismo mesmo, mas a coisa da loucura né, a loucura é algo que não foi aceito em nenhuma sociedade capitalista, socialista ou comunista. Ninguém soube lidar.”
E tudo isso nos leva à questão: qual o papel da sociedade em um filme como o ‘Coringa’?
Mas isso é assunto para nossa próxima matéria.