Há dez anos, a Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (Fiaf) avaliou a Cinemateca Brasileira, localizada em São Paulo, como uma das três melhores do mundo. Apesar do contexto diferente em que o Brasil se encontrava em 2011, futura sede de eventos internacionais e respeitado mundo afora como uma das economias emergentes, uma coisa que não mudou foi a necessidade de reformas pesadas na Cinemateca.
Fundada nos anos 1940, a instituição foi inspirada pela Museu Vivo de Cinema Francês. Desde então, a Cinemateca vinha coletando e preservando filmes, reportagens e filmes publicitários do Brasil e do mundo, garantindo a sobrevivência e difundindo essas obras para que a população possa ter acesso a cultura. São mais de 245 mil rolos, totalizando cerca de 30 mil títulos cujas datas se iniciam em 1910. Em 2016, por conta do estado técnico dos materiais, começou um processo de escaneamento de emergência do alguns filmes.
O trabalho da instituição é tão fantástico que chamou a atenção da lenda dos cinemas e fã de Glauber Rocha, Martin Scorsese. Em 2010, a Fundação do Cinema Mundial, criada por Scorsese, ajudou a Cinemateca na restauração do filme Limite, de 1931. Dirigido por Mário Peixoto, o longa é um dos filmes mais importantes da história do cinema mudo brasileiro. Anos mais tarde, foi a vez de Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980) ser restaurado pela fundação de Scorsese.
Nos últimos anos, o diretor vem fazendo duras cobranças ao governo brasileiro sobre a falta de incentivos e repasses de verbas para a Cinemateca Brasileira. Em 3 de novembro de 2020, por meio de Walter Salles, escreveu sobre a importância da organização na Folha de São Paulo. Na ocasião, o diretor reafirmou sua revolta com a situação: “Escrevo para manifestar minha preocupação com a Cinemateca Brasileira. Preocupação não é a palavra adequada. Trata-se de angústia e absoluta incredulidade. A possibilidade de que a maior coleção audiovisual da América Latina tenha sua verba suspensa em meio a uma pandemia é totalmente inconcebível. As artes não são um luxo —são uma necessidade, como bem o demonstra seu papel incontestável na história da humanidade. E a preservação das artes, especialmente de uma tão frágil quanto o cinema, é um trabalho difícil, mas essencial. Esta não é minha opinião. É um fato. Espero sinceramente que as autoridades federais do Brasil abandonem qualquer ideia de retirada do financiamento e façam o que precisa ser feito para proteger o acervo e a dedicada equipe da Cinemateca”.
Na época desse lamento de Scorsese, a Cinemateca estava fechada há mais de 300 dias. Em agosto de 2020, quando o Governo Federal assumiu o controle da instituição, todos os 52 funcionários que integravam a folha de pagamento foram demitidos. A justificativa dada foi a grave crise financeira e o não repasse de R$ 14 milhões em verba prometidos pelo governo de Jair Bolsonaro para a Cinemateca em 2020. Posteriormente, a gestão federal atual comentaria que a instituição traz prejuízo aos cofres públicos.
Em reportagem de 20 de maio de 2020, a revista Veja conversou com um dos funcionários da instituição que, na época, ressaltou a importância da manutenção do local, já que os filmes em acetato precisavam ser acomodados em salas climatizadas, correndo risco de deterioração, além das películas de nitrato de celulose, altamente inflamáveis. Ou seja, o risco de incêndio era de conhecimento público e foi avisado previamente.
No início da noite desta quinta-feira (29), um incêndio tomou conta do galpão da Cinemateca Brasileira, apagando parte inestimável da cultura e da história brasileira registrada em vídeo. O incêndio poderia ter sido evitado com o repasse de verbas e administração correta da fundação, que vem agonizando há anos. Infelizmente, é muito provável que os materiais perdidos não sejam recuperados. Agora, a preocupação é saber se os responsáveis serão punidos por esse crime contra a cultura e memória brasileira ou se ninguém será responsabilizado pela negligência e descaso com o patrimônio nacional.