De tempos em tempos surgem aqueles filmes que mesmo donos de grande prestígio e renome envolvido, terminam escapando do radar da maior parte do público. É o caso de Os Pequenos Vestígios, que está disponível no Max.
Mesmo contendo três astros vencedores do Oscar do nível de Denzel Washington, Jared Leto e Rami Malek para impulsionar um suspense nos moldes de Seven (1995) e do seriado True Detective (2014), Os Pequenos Vestígios passou completamente em branco, se tornando um dos filmes menos comentados de 2021.
Ajuda no seu ostracismo os críticos não terem sido muito gentis com o longa, lhe garantindo no Rotten Tomatoes divisores 45% de aprovação, embora com o público, tanto no mesmo agregador quanto no IMDB as avaliações tenham sido bem mais favoráveis. E aqui que entro com a minha proposta de indicar o filme para você. Para que dê uma chance e confira por conta própria, ainda mais se for fã do gênero suspense policial. Os Pequenos Vestígios poderá te surpreender positivamente, como fez comigo.
Começarei dizendo que este não é o típico thriller investigativo do qual estamos acostumados, embora possua toda a estrutura narrativa convencional do gênero. Assim como os citados True Detective, Seven e O Silêncio dos Inocentes antes deles, é uma história de policiais investigando sequestros e assassinatos de jovens mulheres, muito provavelmente realizados por um serial killer. A grande sacada aqui, no entanto, é que se trata mais da vida e psicológico dos investigadores do que do criminoso em si. E aí, o longa guarda suas semelhanças com Zodíaco (2007), de David Fincher, e Os Suspeitos (2013), de Denis Villeneuve, dadas as devidas proporções.
Denzel Washington, astro duas vezes vencedor do Oscar e considerado por muitos o mais talentoso de sua geração, protagoniza como o policial Joe ‘Deke’ Deacon, investigador talentoso caído em desgraça. Uma vez um dos agentes mais promissores de Los Angeles, Deke “queimou todas as pontes” ao ficar obcecado por um caso envolvendo o desaparecimento e morte de algumas jovens da cidade. Seus desafetos com a maioria dos colegas de serviço resultaram em sua transferência para uma cidade menor, onde foi rebaixado de cargo. Tal obsessão inclusive causou seu divórcio e distanciamento da filha.
Anos mais tarde ele volta ao antigo distrito para entregar documentos e se vê novamente no meio de uma investigação que pode ter ligação com o passado. À frente do caso agora está o jovem policial sensação Jim Baxter (Rami Malek), o intérprete de Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody (2018). Embora haja certo atrito de início, já que Deke não se sente à vontade no local e critique o fato do novo pupilo se enquadrar na religiosidade imposta pelo chefe da delagacia, aos trancos e barrancos a dupla, veterano e novato, começa a se entrosar e mostrar que possuem um ponto de interseção: a obstinação pelo caso. Baxter diz trabalhar pelas vítimas, enquanto Deke afirma ser por ele mesmo. Mas pode ser ao contrário, como o filme irá nos mostrar.
O personagem de Washington possui um trauma pessoal relacionado a uma tragédia, que vai sendo descascado ao longo da projeção. Já o detetive de Malek gosta da badalação de ser um herói e ter seu ego inflado. E estas características irã determinar estes dois homens no curso de uma investigação fatídica. O personagem de Malek é um jovem pai de família, casado e com duas filhas pequenas. Porém, um dos aspectos negativos e que não desce muito redondo é a forma estranha com que o ator resolve interpretar o personagem, por vezes soando como o próprio psicopata que estão caçando. Não sei se a intenção era levantar suspeita para o próprio investigador. De qualquer forma é uma escolha bem peculiar e sombria para um personagem cercado de luz. E a decisão final de seu personagem é tão duvidosa que gerou menções afirmando que aquele não é um comportamento padrão policial.
Entra o rouba-cenas Jared Leto vivendo o melhor personagem do filme. O caipirão pra lá de esquisito Albert Sparma – até seu nome é bizarro. Cabeludo, barbudo, cadavérico mas com uma pança falsa e um jeito de andar muito distinto, a composição que o jovem ator faz para o personagem é impressionante. O camaleônico Leto desaparece no papel e tudo que conseguimos ver é um ser que beira o grotesco. Alguém que não desejaríamos encontrar à noite em um beco. Sparma é um técnico em reparos de geladeira que trabalha numa loja e termina por se tornar o principal suspeito da investigação. O que chama atenção no texto é a sagacidade com que o personagem foi criado, sempre a um passo na frente dos investigadores, dono de sacadas rápidas e bastante satíricas. No fundo os detetives sabem que ele é o culpado, ou ao menos desejariam muito que fosse.
Sparma é o tipo que vive num lugar apertado, sem grandes aspirações e até soa lento da cabeça. Passa seu dia livre todo dentro de boates de strippers. Porém, quando colocado em cheque se mostra o sujeito mais esperto da sala. É deste cabo de força triplo que segue um jogo de gato e rato de ritmo deliberadamente lento e que pode até te fazer desistir da jornada, acreditando que será mais um filme de “policiais caçam um psicopata”.
Acontece que existe uma razão para Os Pequenos Vestígios se passar nos anos 90, é que ele realmente foi escrito pelo diretor John Lee Hancock ainda em 1993, ficando engavetado estes anos todos como um daqueles projetos bons que não são filmados. Na época, Hancock se destacava como roteirista ao ter escrito Um Mundo Perfeito, protagonizado por Kevin Costner e dirigido por Clint Eastwood. No embalo de dramas criminais que não são o que aparentam, Hancock desenvolveu também a trama mais sombria deste filme. Na época, nomes como Steven Spielberg, Clint Eastwood e Danny DeVito visavam tirar o texto do papel sem sucesso. DeVito inclusive estava interessado em viver Sparma, caso fosse comandar o longa. Já pensou? Fora isso, o saudoso Brandon Lee, filho da lenda Bruce Lee, teria lido o roteiro e estava interessado em um dos papeis, antes de sua morte prematura em 1993 enquanto filmava O Corvo.
John Lee Hancock e Os Pequenos Vestígios seguiriam caminhos diferentes. Hancock se tornaria um diretor de prestígio comandando produções indicadas ao Oscar, vide Um Sonho Possível (2009) e Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013), além de obras elogiadas como Fome de Poder (2016) e Estrada Sem Lei (da Netflix). Quase trinta anos depois, tendo feito muito em sua carreira, o diretor viu o ciclo completo para sua obra ocorrendo quando finalmente tirou o pó de seu texto e o levou às telas.
Muitos prezam o esforço do trio principal, mas Os Pequenos Vestígios é bem mais questionador. Em termos de desempenho, o talentoso e egocêntrico Leto tem vantagem ao saber aproveitar um personagem tão suculento quanto Sparma. Leto disse que estava apreensivo em viver novamente um personagem sombrio, mas que não poderia deixar a oportunidade de trabalhar com o já lendário Denzel Washington. E podemos atestar que suas cenas com o ator pegam mais fogo do que os trechos de ambos com Malek. Em especial duas cenas chamam atenção. O interrogatório em que Denzel explode para cima de Leto. E o “encontro acidental” na rodovia em que Washington se arma para o duelo. Pura tensão.
O que me soou mais significativo foi o debate implícito sobre pena de morte e sua consequência. Mesmo que não de forma didática, o texto é claro sobre suas intenções. Sobre a tênue linha entre culpados e inocentes. Sobre instintos e provas. O que fazer quando tudo aponta numa direção, mas não conseguimos provar? Quantos inocentes morreram ao serem condenados por um crime que não cometeram? O sistema pode funcionar 99% do tempo, mas os 1% podem mesmo ser considerados efeitos colaterais? Sparma não tinha nada nem ninguém para interceder por ele, neste caso ele se torna dispensável?
A dualidade de heróis e vilões, certos e errados, é o que traz um sabor tão especial para Os Pequenos Vestígios. Seu desfecho é o sal na ferida ausente em produções adoradas como Seven e Os Suspeitos (2013). E justamente talvez por isso elas sejam queridas e o incômodo proposto por Os Pequenos Vestígios não.