Finalmente chegou às telas dos cinemas mundiais um dos filmes mais aguardados do ano, com mais uma memorável atuação de Joaquin Phoenix. O novo longa-metragem traz à cena a história por trás de um dos principais vilões da DC Comics, o Coringa. Diferente do que estamos acostumados a ver nos filmes de super-heróis, a narrativa apresentada por Todd Phillips nos mostra o personagem em sua construção. A história e o contexto sócio-político por trás daquele que viria a ser tornar um dos integrantes mais icônicos do Universo da DC.
O tom do filme não traz à luz uma persona construída e que deve ser rapidamente combatida por um herói que salva o dia. Mas mergulha em profundas questões que desencadearam na formação de uma personalidade doentia. Aspectos psicopatológicos são o grande destaque da construção do personagem – inicialmente para seu intérprete e, posteriormente, para o público que acompanha o processo ao longo das pouco mais de duas horas de filme.
A forma crua e violenta como o filme se apresenta gerou uma série de discussões pelo mundo. Por um lado, diversos críticos associaram a trama a um estímulo à realização de chacinas, como as, infelizmente, tão usuais nos EUA. Duras críticas foram direcionadas ao filme acusando-o de ser um estímulo ao movimento denominado “incel”. Existe no mundo atual um grupo que que usa a deepweb como plataforma de comunicação. Conhecidos como “incel”, estes grupos são formados por indivíduos de celibato involuntário que culpabilizam a sociedade por essa condição (em especial as mulheres, por ser um grupo formado principalmente por homens heterossexuais).
Associar o longa-metragem a um estímulo ao grupo em questão é uma delicada afirmação, que pode estar refletindo um temor latente na sociedade (não só estadunidense). Ou, em outra abordagem, tais críticas podem denotar uma falta de compreensão que transfere a responsabilidade de uma esfera de governança para a influência do cinema na formação da personalidade e de toda sorte de transtorno nos indivíduos.
Antes de qualquer coisa, é importante dizer que a ideia aqui não é falar sobre verdades, e sim sobre interpretações possíveis. Não se deve descartar que em uma sociedade altamente violenta, obras, performances, filmes e manifestações artísticas diversas que tratem de temas que tenham relação com a violência possam vir a ser interpretados como gatilhos. No entanto, muitos temas caros são abordados no longa-metragem e merecem sim atenção. Mais do que isso, merecem uma discussão ampla capaz de encerrar tabus, explicitar origens e auxiliar no desenvolvimento de sociedades mais pacíficas. Na opinião desta que vos escreve, “Coringa” pode ser visto muito mais como um grito de alerta sobre questões diversas, entre elas: o papel da assistência social, o descaso político com a condição dos cidadãos em cidades violentas, depressão, psicose e transtornos psicológicos. Além, é claro, da relação entre esses aspectos e a facilidade de aquisição de armas de fogo.
Não deixe de assistir:
O coringa com o qual crescemos acostumados pode ser facilmente interpretado como um psicopata. De acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (A.K.A. CID 10), são características dos indivíduos com este tipo de transtorno de personalidade pelo menos três das seguintes: “(A) indiferença insensível para os sentimentos dos outros; (B) a atitude grosseira e persistente de irresponsabilidade e desrespeito por normas sociais, regras e obrigações; (C) incapacidade de manter relacionamentos duradouros, embora não tendo dificuldade em estabelecê-los; (D) muito baixa tolerância à frustração e um baixo limiar para descarga de agressão, incluindo violência; (E) incapacidade de experimentar culpa e de lucrar com a experiência, particularmente punição; (F) propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis, para o comportamento que levou o paciente em conflito com a sociedade.”[1]. No entanto, o que nos apresenta a versão 2019 do vilão difere em diversos aspectos, ao menos em sua constituição enquanto assassino em série.
O personagem de Phoenix, Arthur Fleck, sofre de um transtorno denominado Transtorno da expressão emocional involuntária (a sigla em inglês IEED). A característica mais simbólica desse transtorno, no caso do Coringa, é a falta de controle sobre o próprio riso, não sendo ele condizente com sua emoção. A condição mais conhecida como ‘riso e choro patológicos’ foi estudada desde o século passado, sendo uma das contribuições mais importantes a do estudioso Wilson, em 1924. Já em 2006 uma pesquisa encabeçada por Cummings apresenta de forma mais detalhada alguns elementos que compõem o transtorno, entre eles: riso ou choro incontrolável, mudança na capacidade de regular o afeto, reações exageradas, transtorno do funcionamento social. Episódios de fúria também aparecem como um elemento que pode decorrer da condição. A partir desta patologia, então, se justificam, além da famosa risada do Coringa, algumas de suas características de personalidade. E, falando de forma rasa, não representa em si uma relação com homens hétero-cis involuntariamente celibatários, como insinuaram as críticas mencionadas. Mas, sigamos.
Ao longo da trama, (ALERTA DE POSSÍVEL SPOILER, SE PÁ, PULA ESSE PARÁGRAFO!) vamos caminhando junto ao personagem e percebemos que além da falta de tratamento público a sua patologia (seja pela falta de acompanhamento psiquiátrico, seja pelo corte de medicamentos), uma série de fatores como maus tratos na infância sinalizam traumas profundos que podem ter relação com as características do vilão tanto no nível psicológico quanto no físico – uma vez que casos do dito riso patológico estão relacionados à lesões no crânio; um possível abandono parental também mostra efeitos na capacidade de socialização. Soma-se a isso algumas caraterísticas psicóticas, como alucinações esquizofrênicas, o eco do pensamento e ideias de controle delirantes (CID 10).
Todas essas características, e a forma como a própria narrativa se constrói distanciam de alguma forma a condição do personagem, do movimento dos incel. Mas, por outro lado, trata-se de um filme violento. Uma violência dura e seca. Violência que pode ser interpretada como estímulo irresponsável a outras ações violentas. Mas aqui coloco o questionamento: o que leva um filme com uma abordagem mais complexa da psique do indivíduo ser visto como estímulo a determinadas práticas, e diversos outros filmes de assassinos em série não causem a mesma comoção? Porque os filmes que mostram o mesmo personagem já consolidado executando dezenas de mortes não é tão impactante? Ou mesmo, porque filmes de ação onde as mortes são tantas que acabam se naturalizando não geram uma reação igual ou maior? Por aqui fica uma sensação fria de que vislumbrar o armamento como forma de poder ainda é um interesse. Por isso que películas com homens enormes matando gente como quem troca de roupa nos parecem quase besteirol. Mas ao abordar a violência associada a diversos fatores sociais, políticos, de saúde pública etc. soa como um risco, pois se aproxima da realidade. E de fato essa proximidade toda assusta.
Muitas condições moldam assassinos. Por trás deles existe uma trama complexa de vivências, referências, privações, traumas, patologias (e dava para ficar aqui o resto da semana enumerando). Tapar os olhos para o papel do Estado e da sociedade nessa construção é só fortalecer a própria violência. Não é o cinema que, sozinho, vai desencadear ações sociais diversas. Muitos são os fatores. E para que um a um eles sejam confrontados, a meu ver, é necessário que sejam representados, falados, discutidos em toda sua densidade. E nesse ponto, “Coringa” foi muito feliz.
* Transtornos não são sinônimos de pessoas violentas e perigosas.
Cabe aqui aproveitar a ocasião para falar da importância do tratamento psicológico de forma universal. Ao falar de transtornos de personalidade, para além dos estigmas e estereótipos, é fundamental que se diga que sempre há a possibilidade de uma vida boa e em equilíbrio, uma vez que seja seguido um tratamento bacana para sua condição. Todos (TODOS) deveriam buscar acompanhamento psicológico, psicanalítico e, em muitos casos, também psiquiátrico.
[1] É importante mencionar que a psicopatia não significa necessariamente um indivíduo violento. Isso é um estereótipo.
Fontes de Pesquisa e Referências:
Lorenna Barradas e Diêgo Meireles – A Representação da Esquizofrenia no Cinema
Isabelle Barbosa Nogueira e Amanda Freire Gomes, 2013 – O Psicopata – ou Sobre a Perversão
Helga Cristina Santos SartoriI; Tomas BarrosII; Almir TavaresIII, 2008 – Transtorno da expressão emocional involuntária