Nascido para não matar
O cinema é uma arte espetaculosa. E filmes como 1917 nos ajudam a lembrar disso. Sem grandes pretensões intelectuais, leia-se: ao mesclar entretenimento com conteúdo, o longa escrito e dirigido pelo cineasta Sam Mendes (Beleza Americana) demonstra com maestria que Hollywood ainda pode entregar sopros de ar fresco se os estúdios tiverem plena confiança em realizadores de talento e audácia.
Você pode pensar: “mais um filme de guerra?”. Sim, te entendo. O gênero pode soar como reciclagem devido à narrativa e conteúdo. Aqui, por exemplo, são inconfundíveis certas semelhanças de roteiro com O Resgate do Soldado Ryan (fazer tudo para encontrar uma única pessoa no caótico cenário da guerra), Apocalypse Now (novamente, encontrar e transmitir uma mensagem a uma única pessoa numa descida ao inferno) e Nascido para Matar (o transitar por lugares devastados, precisando matar enquanto pondera-se o sentido de tudo).
Mas acredite, ver Mendes trabalhando o tema é ver um cineasta no auge de sua arte, dando tudo de si, e entregando verdadeiramente novidades. Comparativamente, seria Scorsese abordando novamente a máfia em O Irlandês. Sentiu o drama?
Todo ano temos aquele filme que parece chegar atrasado na festa das premiações, depois que quase todas as cartas já estão marcadas. Tais filmes, geralmente costumam ser o ponto alto da festa. Aquele estranho que ninguém conhecia e havia visto, mas que sai arrebatando a todos, passando por cima dos demais. 1917 é este filme! Até o Globo de Ouro ninguém levava fé em mais um filme de guerra. Após a vitória, o hype pelo longa cresceu exponencialmente, e após conferirmos a obra, só podemos dizer que seu comandante estava certo no discurso de agradecimento. A produção é impressionante.
A venda de 1917 não foi fácil. Esta é uma grande produção sem nomes reconhecíveis à frente do elenco, que espera fazer barulho nas bilheterias. Os “astros” aqui são mesmo o diretor, o próprio filme e, claro, sua potente história – baseada nas experiências reais de Alfred H. Mendes, avô do cineasta, que o inspirou a assumir pela primeira vez a tarefa de roteirista. Desta forma, o envolvimento do realizador se torna pessoal, surgindo como uma declaração, um atestado, transcendendo aspirações meramente artísticas. Mendes abraça o tema com a validação de quem esteve (mesmo que através de sangue) envolvido involuntariamente em meio a esta imensa insanidade.
O coração de 1917 pode não ser sua parte técnica, mas todo o resto sim. Na verdade, o filme é muito vendido através de sua narrativa vistosa. Um dos motes do projeto, o qual todos comentam incessantemente, é a filmagem quase sem cortes. A ideia é apresentar o filme como sendo apenas um longo plano-sequência, uma tomada só sem cortes. É claro que tal feito para uma produção desta magnitude seria impossível, assim Mendes adere à escola de Alfred Hitchcock em Festim Diabólico (1948), reprisada por Alejandro Iñárritu (Birdman, 2014) e Sebastian Schipper (Victoria, 2015), cortando estrategicamente em trechos específicos, de forma quase imperceptível.
Na trama, dois jovens soldados na Primeira Guerra Mundial, interpretados por George MacKay (o filho mais velho de Capitão Fantástico, 2016) e Dean-Charles Chapman (de Game of Thrones), são incumbidos de uma missão quase suicida: encontrar, em meio ao monstruoso conflito, um oficial e transmitir-lhe uma carta com ordens de cessar um ataque – uma armadilha inimiga. De forma episódica, a dupla vai pulando de evento em evento, passando por uma mina escura repleta de ratos explosivos, uma ponte caída, quedas de corredeiras, trincheiras, aviões despencando e quase os acertando, encontros com aliados e por aí vai. Um exercício virtuoso que nos imerge na experiência, nos fazendo experimentar esta jornada repleta de adrenalina.
Além de todas as suas qualidades, 1917, apesar da data de validade vencida, se mostra atual, chegando como conto cautelar. Quando achávamos que havíamos aprendido com os horrores das guerras, a humanidade cisma em regredir, querendo repetir erros passados devido à ganância, arrogância e intolerância de homens poderosos. A evolução de nossa espécie ainda tem um longuíssimo caminho pela frente, e a trajetória promete turbulência. Estejamos preparados.