quarta-feira , 20 novembro , 2024

Crítica 2 | A Casa Que Jack Construiu – Lars Von Trier fala sobre si

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Se ficarmos presos às polêmicas de Cannes e aos excessos publicitários do diretor Lars Von Trier, A Casa Que Jack Construiu (The House That Jack Built) não passará de um filme gore sobre um assassino. Se superarmos isso – e o embrulho no estômago –  iremos encontrar uma metáfora sobre a criação artística – e sobre os demônios que assombram os criadores.

Metáfora é a chave para entender a obra de Von Trier. No caso de A Casa…, temos um filme com um potencial metafórico menor do que os anteriores, além de um trabalho visualmente menos interessante do que outras obras do diretor.



Seu epílogo, infelizmente, acrescenta poucas camadas àquelas que já estavam presentes ao longo da projeção, reforçando a ideia do artista incapaz de fugir do inferno pessoal que é a criação artística e da mediocridade de sua arte. É justamente o oposto de obras anteriores, como Ninfomaníaca ou Dogville, na qual os excessos de referências e a verborragia do diretor era contrabalançada com desfechos que expandiam as possibilidades interpretativas da obra. Em A Casa…, já é possível especular muita sobre a relação entre morte, violência e arte com o material que Jack nos forneceu nas primeiras duas horas de projeção. O epílogo pouco acrescenta.

O psicopata Jack (Matt Dillon) acredita que seus crimes são uma expressão artística. Em um plano mais direto, o filme questiona os limites éticos da produção artística, ou mesmo a qualidade da arte moderna (como quando é exposta a semelhança entre o cubismo e um cadáver). Porém, o aspecto que mais interessa o diretor é a proximidade do desejo da criação artística com a pulsão de morte e violência. O fato do protagonista ser quem é já é suficiente para levar o espectador a tais questionamentos. Além disso, a montagem do filme intercala imagens que reforçam essa ambiguidade. Quando se incluem cenas de líderes totalitárias (como Hitler e Stalin), o filme recorda a plateia que tais regimes políticos usaram a linguagem das artes para vender suas ideologias. Ao expor essa proximidade, o diretor lembra da responsabilidade que o artista tem em mãos.

Por outro lado, ao colocar tantas especulações sobre a arte na boca de um serial killer, Von Trier demonstra também seu desprezo ao mundo das artes. Por mais surreal que pareça, há muitos momentos no filme – especialmente na parte inicial – que o humor negro do diretor expõe o absurdo da mente do assassino Jack – ou de qualquer artista. Enfim, é o diretor, muito ácido, debochando do mundo das artes.

O filme ainda encontra tempo para tocar em outros assuntos, como a misoginia da sociedade. Ao contrário do que dizem as más línguas, a obra de Von Trier é qualquer coisa, menos machista e misógino. Certamente, quem lê a obra dessa maneira fica apenas na superfície, e julga que a violência cometida contra as suas personagens femininas é um ataque às mulheres. Sem muito esforço, podemos notar o forte apreço que o diretor tem pelas mulheres. A violência pela qual elas passam é antes uma denúncia de um mundo, este sim, machista e misógino.

A pecha de machista, certamente, será reforçada por este filme. Von Trier tem a coragem de assumir o ponto de vista de um assassino em série que, apesar de não matar apenas mulheres, tem nelas suas vítimas preferenciais. Jack não entende como os homens são tratados como culpados por tudo e as mulheres são vistas como vítimas. Para ele, os homens têm uma vida difícil. Isto é dito por um sujeito que mata mulheres brutalmente. Mesmo que o protagonista seja contraditado em um diálogo, colocar em primeiro plano a voz de um psicopata sem uma condenação explicita – tão ao gosto dos justiceiros sociais atuais – demonstra a intenção do diretor de produzir um filme consistente. Infelizmente, o público não costuma digerir bem quando o artista dá voz para um personagem asqueroso, confundindo criador e criatura.

Ao contrário de seu protagonista, Von Trier enxerga nas mulheres algo de sacrossanto – como bem demonstrou em Ninfomaníaca –, reforçado pelos paralelos com a Divina Comédia. No poema, Dante Alighieri reserva o lugar mais alto do Paraíso para a sua amada Beatriz. No filme, Jack é incapaz de ver qualquer qualidade no feminino; a mulher é um ser que se vitimiza, que faz mimimi. Enquanto Dante fez um dos poemas fundamentais da nossa civilização, Jack sequer consegue terminar sua casa. Ele é um incapaz de erguer qualquer coisa que tenha uma beleza genuína. “Sua arte” só consegue retratar o feminino de forma grotesca.

Von Trier não quer apenas denunciar que as mulheres são as primeiras a sofrear em nossa sociedade. Ele parece apontar o dedo para aquela arte que é incapaz de traduzir a dimensão sagrada do feminino. Uma arte que não consegue perceber a tênue separação entre beleza e horror, não será capaz de traduzir a complexidade do feminino.

O dedo do diretor não aponta apenas nessa direção. Se para Von Trier a mesma pulsão que gera a morte também gera a arte, ele também critica o artista que, embriagado pelo seu ego, é incapaz de perceber seus erros – ou até a violência que sua obra pode apoiar, como no caso dos artistas ligados aos regimes totalitários. Esta leitura é confirmada pela personalidade de Jack, um sujeito vê seus crimes como se fossem uma Guernica. Curiosamente, Jack é incapaz de terminar sua casa. A única coisa que poderia carregar beleza artística genuína é constantemente derrubada por ele. Resta-lhe confundir crime com arte e se enterrar no seu inferno ególatra.

Apesar de todas as metáforas que apontamos nesta resenha, A Casa… não é a melhor obra do diretor, nem aquela com maior quantidade de camadas. Visualmente menos impactante, muito das qualidades do filme está na montagem e na atuação de Dillon, que opta por uma interpretação contida, fugindo da caricatura. Mas, esta é a obra que fica mais evidente a angustia existencial do artista Lars Von Trier. O diretor sofre de depressão, e desde Anticisto (2009) ele vem traduzindo isto em película. Neste seu último trabalho, notamos seu medo de que suas angústias, ao invés de serem traduzidas em filme, desaguassem em algo como uma tentativa de suicídio. Por este ponto de vista, A Casa… é um filme altamente pessoal.

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Metáfora é a chave para entender a obra de Von Trier. No caso de A Casa…, temos um filme com um potencial metafórico menor do que os anteriores, além de um trabalho visualmente menos interessante do que outras obras do diretor.

Seu epílogo, infelizmente, acrescenta poucas camadas àquelas que já estavam presentes ao longo da projeção, reforçando a ideia do artista incapaz de fugir do inferno pessoal que é a criação artística e da mediocridade de sua arte. É justamente o oposto de obras anteriores, como Ninfomaníaca ou Dogville, na qual os excessos de referências e a verborragia do diretor era contrabalançada com desfechos que expandiam as possibilidades interpretativas da obra. Em A Casa…, já é possível especular muita sobre a relação entre morte, violência e arte com o material que Jack nos forneceu nas primeiras duas horas de projeção. O epílogo pouco acrescenta.

O psicopata Jack (Matt Dillon) acredita que seus crimes são uma expressão artística. Em um plano mais direto, o filme questiona os limites éticos da produção artística, ou mesmo a qualidade da arte moderna (como quando é exposta a semelhança entre o cubismo e um cadáver). Porém, o aspecto que mais interessa o diretor é a proximidade do desejo da criação artística com a pulsão de morte e violência. O fato do protagonista ser quem é já é suficiente para levar o espectador a tais questionamentos. Além disso, a montagem do filme intercala imagens que reforçam essa ambiguidade. Quando se incluem cenas de líderes totalitárias (como Hitler e Stalin), o filme recorda a plateia que tais regimes políticos usaram a linguagem das artes para vender suas ideologias. Ao expor essa proximidade, o diretor lembra da responsabilidade que o artista tem em mãos.

Por outro lado, ao colocar tantas especulações sobre a arte na boca de um serial killer, Von Trier demonstra também seu desprezo ao mundo das artes. Por mais surreal que pareça, há muitos momentos no filme – especialmente na parte inicial – que o humor negro do diretor expõe o absurdo da mente do assassino Jack – ou de qualquer artista. Enfim, é o diretor, muito ácido, debochando do mundo das artes.

O filme ainda encontra tempo para tocar em outros assuntos, como a misoginia da sociedade. Ao contrário do que dizem as más línguas, a obra de Von Trier é qualquer coisa, menos machista e misógino. Certamente, quem lê a obra dessa maneira fica apenas na superfície, e julga que a violência cometida contra as suas personagens femininas é um ataque às mulheres. Sem muito esforço, podemos notar o forte apreço que o diretor tem pelas mulheres. A violência pela qual elas passam é antes uma denúncia de um mundo, este sim, machista e misógino.

A pecha de machista, certamente, será reforçada por este filme. Von Trier tem a coragem de assumir o ponto de vista de um assassino em série que, apesar de não matar apenas mulheres, tem nelas suas vítimas preferenciais. Jack não entende como os homens são tratados como culpados por tudo e as mulheres são vistas como vítimas. Para ele, os homens têm uma vida difícil. Isto é dito por um sujeito que mata mulheres brutalmente. Mesmo que o protagonista seja contraditado em um diálogo, colocar em primeiro plano a voz de um psicopata sem uma condenação explicita – tão ao gosto dos justiceiros sociais atuais – demonstra a intenção do diretor de produzir um filme consistente. Infelizmente, o público não costuma digerir bem quando o artista dá voz para um personagem asqueroso, confundindo criador e criatura.

Ao contrário de seu protagonista, Von Trier enxerga nas mulheres algo de sacrossanto – como bem demonstrou em Ninfomaníaca –, reforçado pelos paralelos com a Divina Comédia. No poema, Dante Alighieri reserva o lugar mais alto do Paraíso para a sua amada Beatriz. No filme, Jack é incapaz de ver qualquer qualidade no feminino; a mulher é um ser que se vitimiza, que faz mimimi. Enquanto Dante fez um dos poemas fundamentais da nossa civilização, Jack sequer consegue terminar sua casa. Ele é um incapaz de erguer qualquer coisa que tenha uma beleza genuína. “Sua arte” só consegue retratar o feminino de forma grotesca.

Von Trier não quer apenas denunciar que as mulheres são as primeiras a sofrear em nossa sociedade. Ele parece apontar o dedo para aquela arte que é incapaz de traduzir a dimensão sagrada do feminino. Uma arte que não consegue perceber a tênue separação entre beleza e horror, não será capaz de traduzir a complexidade do feminino.

O dedo do diretor não aponta apenas nessa direção. Se para Von Trier a mesma pulsão que gera a morte também gera a arte, ele também critica o artista que, embriagado pelo seu ego, é incapaz de perceber seus erros – ou até a violência que sua obra pode apoiar, como no caso dos artistas ligados aos regimes totalitários. Esta leitura é confirmada pela personalidade de Jack, um sujeito vê seus crimes como se fossem uma Guernica. Curiosamente, Jack é incapaz de terminar sua casa. A única coisa que poderia carregar beleza artística genuína é constantemente derrubada por ele. Resta-lhe confundir crime com arte e se enterrar no seu inferno ególatra.

Apesar de todas as metáforas que apontamos nesta resenha, A Casa… não é a melhor obra do diretor, nem aquela com maior quantidade de camadas. Visualmente menos impactante, muito das qualidades do filme está na montagem e na atuação de Dillon, que opta por uma interpretação contida, fugindo da caricatura. Mas, esta é a obra que fica mais evidente a angustia existencial do artista Lars Von Trier. O diretor sofre de depressão, e desde Anticisto (2009) ele vem traduzindo isto em película. Neste seu último trabalho, notamos seu medo de que suas angústias, ao invés de serem traduzidas em filme, desaguassem em algo como uma tentativa de suicídio. Por este ponto de vista, A Casa… é um filme altamente pessoal.

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