Crítica satírica na medida
Desde que foi inaugurada no final da última década, a produtora Blumhouse, criada pelo californiano Jason Blum, foi escalando até se tornar sinônimo de filme de gênero de qualidade. E o gênero ao qual estamos nos referindo é o terror. Tudo começou com uma pequena produção independente chamada Atividade Paranormal (2007), que se transformou num verdadeiro fenômeno rendendo inúmeras sequências. Com esta noção podemos afirmar que a Blumhouse é a casa que Atividade Paranormal construiu – assim como Freedy Krueger e a sua Hora do Pesadelo fizeram com a New Line.
Hoje, a Blumhouse produz filmes como A Visita (2015) e Fragmentado (2017), os dois últimos do autoral M. Night Shyamalan, assim como este Corra!, seu mais novo sucesso. O gênero do terror é conhecido por custar pouco e render muito. Quando é bem produzido então. Corra! não conta com grandes nomes à frente ou atrás das câmeras, mas é o típico filme para fazer estrelas, cujo chamariz é seu roteiro confeccionado à perfeição, recheado de suspense, e remetendo às boas histórias da era de ouro do cinema.
Se formos dar o mérito principal para alguém, ele deve ir para o diretor e roteirista Jordan Peele, garantido de se tornar um astro em breve. Mais conhecido como ator e comediante, Peele estreia na direção de longas com o pé direito, usando bastante seu background como humorista para falar de uma coisa que conhece bem: racismo. Curiosamente, Peele não usa seu espaço para ser panfletário ou tendencioso, e sua crítica social funciona muito mais na forma de uma sátira, apresentando inclusive o outro lado da moeda – uma cena específica aponta bem isso (a da delegacia).
Na trama, Chris Washington (Daniel Kaluuya), um jovem negro, está nervoso pois irá conhecer os pais da namorada branca Rose (Allison Williams, filha do famoso âncora norte-americano Brian Williams) durante um final de semana na casa deles. Com este mote simples, mas que ainda se mostra tabu cinquenta anos após o icônico filme de mesmo tema Adivinha Quem Vem Para Jantar (1967), saído de uma época bem menos amistosa para tal, o diretor cria uma semi obra-prima. Pode-se concluir inclusive que Peele tenha usado o clássico de Stanley Kramer como bússola, partindo desta premissa.
Uma vez no local, Chris percebe que não tinha com o que se preocupar, pois os pais da moça, assim como os empregados no local, familiares e amigos não poderiam ser mais receptivos e simpáticos. Mas como nem tudo são flores, ou não teríamos um filme de terror e suspense, aos poucos o protagonista começa a notar o comportamento errático de alguns, o que o leva a uma investigação sobre o que possa estar ocorrendo na propriedade. E bem, esta é a premissa básica. Falar mais do que isso seria estragar a surpresa de vocês.
Vale dizer apenas que o “horror” é provido de uma questão bem sensível, ainda mais vinda nos tempos politicamente corretos no qual vivemos. Justamente por isso, quando pela primeira vez fiquei sabendo do filme, e assisti às primeiras prévias, não entendi bem a proposta, a qual considerei de mau gosto. Um tempinho depois, estudando sobre o realizador Peele e percebendo qual seu objetivo com o filme, a coisa torna-se bem mais aceitável. O resultado do filme mais ainda.
Como citado, Peele caminha muito bem por essa tênue linha do aceitável e do bom gosto, como um exímio equilibrista, sem nunca bambear. Seu tiro direto é certeiro, desferindo tapas de pelica para todos os lados, sem eximir ninguém. Isso se deve muito pela forma como Peele escreve o filme, de uma maneira quase velada, subentendida, não declarada. Seu humor é a segurança, como uma autodefesa, deixando o verdadeiro cerne das questões mais sérias adereçados apenas subliminarmente.
Na parte dos atores, a veterana Catherine Keener é pura elegância fria e LilRel Howery rouba todas risadas como Rod Williams, melhor amigo do protagonista. Porém, é Allison Williams (estrela da série Girls), quem está pronta para ser comprada pelo time A de Hollywood. Aqui, vivendo uma personagem cheia de camadas, que pode ser considerada a espinha dorsal do longa. Mas a qual o quanto menos soubermos sobre melhor. Vale dizer que Williams acerta todas as suas notas.
Corra! é um interessante experimento e caso raro de filme que funciona em dois âmbitos. Pode ser vendido para as massas como entretenimento, sendo imensamente satisfatório de tal forma – ficamos a cada virada nos deliciando com as reviravoltas aqui confeccionadas, nas quais o cineasta brinca e engana seu público, no bom sentido, como poucos. Ao mesmo tempo cria um conteúdo tão substancial que se torna digno de acalorados debates sobre o significado de cada cena, como um bom filme deve trazer. E foi exatamente o que meus colegas críticos e eu fizemos ao final da exibição. Jordan Peele, quem sabe poderia seguir por esta linha, criando um novo subgênero dentro do terror, o social horror. Renderia um filão.