Julho se encerra com o filme do Universo Cinematográfico Marvel mais “histórias em quadrinhos” já feito. Com estreia marcada para esta quinta-feira (24), Quarteto Fantástico: Primeiros Passos chega aos cinemas para quebrar o tabu da primeira Superfamília das HQs de nunca ter conseguido uma adaptação cinematográfica realmente boa. Com direção de Matt Shakman (WandaVision), o filme é uma aventura que faz brilhar os olhos de qualquer um que já tenha lido as aventuras clássicas do grupo nos gibis.
Muito disso se deve à opção de ambientar o filme em um universo alternativo, no qual o mundo vive uma realidade retrofuturista. Ou seja, apesar das pessoas se vestirem como nos anos 60, sua tecnologia é consideravelmente mais avançada, muito próxima do conceito que essa década tinha do que seria o futuro. Isso dá ao longa uma roupagem simplesmente fascinante.

A trama se passa quatro anos após o acidente espacial que deu poderes ao grupo. Então, eles já são heróis consolidados e amados por todo o mundo. Mais do que isso, são celebridades. Enquanto Sue Storm (Vanessa Kirby) assume a liderança diplomática da Fundação Futuro, Reed Richards (Pedro Pascal) tem um programa televisivo que ensina ciência para a molecada, e Johnny Storm (Joseph Quinn) é um fenômeno publicitário. Já Ben Grimm (Ebon Moss-Bachrach), ainda se acostumando com o corpo de pedra, leva uma vida mais pacata, centrada em se reconectar com seu bairro de origem.
O filme brilha por finalmente encontrar um equilíbrio na forma como retrata o grupo. Todos têm seu tempo de tela, apesar dos irmãos Storm serem o coração dessa aventura. Mesmo assim, é muito interessante ver o trabalho de Ebon para criar sua versão de O Coisa. O drama do personagem é abordado de forma muito sutil, refletido principalmente em seu comportamento durante o longa. Enquanto os outros buscam aparições públicas e estampam seus rostos em revistas e produtos, O Coisa é mais reservado, como se ainda buscasse aceitar a própria aparência. Justamente por se sentir um monstro, ele é o membro do Quarteto que ostenta as ações e reações mais humanas da história. Ele é mais sensível, ele percebe a gravidez de Sue, ele passa um bom tempo desenvolvendo seus dotes gastronômicos e regressando ao bairro onde nasceu e cresceu, revisitando velhos amigos e relembrando o que fez ele ser quem era. É muito sutil, mas muito bonito.

Mas quem rouba a cena mesmo é Sue Storm. Ela é retratada como o extremo oposto de Reed, e isso fica nítido desde a cena de abertura, que traz o casal descobrindo a gravidez. Enquanto o futuro papai se perde em desespero e preocupação, ela trasborda de alegria, quase como um alívio por eles enfim terem conseguido engravidar, apesar de todos os percalços que enfrentaram nos últimos anos. Mesmo com as preocupações de Reed sobre os efeitos da radiação nas células do feto, ela crê que o bebê virá perfeito e mantém um ar de esperança e fé no futuro. É realmente inspirador. Como Mulher Invisível, ela consegue se destacar da mesma forma. E isso é lindo! Principalmente porque as últimas adaptações a reduziram apenas a um interesse amoroso ou motivo de piadas sexistas. Neste filme, a Sue é peça fundamental e tem um potencial enorme para encantar os fãs e terminar o longa como a personagem favorita de muitos. Seja por seus poderes que fazem justiça aos quadrinhos ou por sua humanidade belíssima.
Já o Johnny segue um molecão. O Tocha Humana é um jovem adulto mundialmente famoso por suas garotas. No entanto, ele carrega a frustração de não ter encontrado uma única mulher que considere interessante o suficiente para manter uma relação duradoura. É como se ele fosse mulherengo para tentar suprir o tédio de ser um super-humano. Nesse contexto, quando cruza caminho com a Surfista Prateada (Julia Garner), seus olhos brilham. Ele fica fascinado pela criatura alienígena e começa uma investigação por conta própria, já que sua falta de maturidade faz com que Reed não o leve muito a sério. Ele conquista com seu carisma e humor afiado, mas também por esse hiperfoco em ajudar a resolver um mistério sem precedentes. E o mais legal é que além de querer provar seu valor, sua maior motivação é manter a família unida – com o amor que sente pelo futuro sobrinho.

Quem acaba ‘sobrando’ um pouco na trama é o Reed de Pedro Pascal. Não por ser ruim, mas porque seu Senhor Fantástico parece estar dando seus primeiros passos nesse universo. Enquanto o resto do grupo está em um estágio avançado de exploração de poderes, ele ainda é muito limitado no uso da elasticidade. Tanto que há uma cena na qual ele se estica mais e sofre bastante com isso. O longa foca mais em sua persona como cientista e na culpa que carrega pelo acidente no espaço. Não ter previsto a onda de radiação o transformou em um homem mais frio e pragmático, colocando as probabilidades de catástrofe a frente da própria vida. No contexto da gravidez, homens costumam ficar mais preocupados e atentos a riscos, agora imagine esse efeito na mente dele. É interessante, só que deve ser melhor explorado mais para frente.
Por outro lado, a dupla Galactus (Ralph Ineson) e Surfista Prateada é sensacional! Mesmo sem aparecer muito, já que o filme é curto, os momentos em que eles pintam na tela são de tirar o fôlego. A introdução do Devorador de Planetas é para lavar a alma de todos os fãs traumatizados com a nuvem de poeira cósmica do longa de 2007. Ele é retratado novamente como uma força da natureza, só que também tem uma consciência. O gigante é atormentado pela fome e busca um sucessor para poder ter descanso. Porém, enquanto não encontra, ele segue se alimentando dos planetas. Já a Surfista é uma arauto atormentada por suas escolhas. Ela tem uma história de origem desenvolvida, mas se destaca mesmo pelas cenas de ação ridiculamente criativas.

Falando nisso, essa falta de vergonha de suas origens nas histórias em quadrinhos é o grande mérito do filme. Mesmo que o roteiro não seja complexo e apele para soluções rápidas, ele usa e abusa da criatividade para conseguir esses feitos das formas mais espetaculares possíveis. E isso é típico dos gibis clássicos do grupo. Dispositivos científicos que são construídos rapidamente para feitos incríveis, carros voadores e viagens espaciais acontecendo em um estalar de dedos. O longa poderia se contentar com o simples, como em colocar a Surfista Prateada voando pelos prédios de Nova York, mas ele prefere explorar os poderes dela em cenários nunca antes abordados nas telonas. É muito mais legal colocá-la surfando um buraco negro, por exemplo, ou driblando canos de lava. No fim das contas, a direção de Matt Shakman sempre opta por retratar o filme da forma mais legal possível. E isso é digno de muitos aplausos. É um filme com cheirinho de banca de jornais.
Por ter um roteiro simples – e passar num piscar de olhos -, Quarteto Fantástico: Primeiros Passos consegue transpor para as telas a sensação maravilhosa de abrir um gibi qualquer do grupo e se deliciar com uma aventura descompromissada por menos de duas horas. É rápido, é dinâmico, é caloroso… É uma experiência familiar completa! Inclusive, Shakman aposta em um artifício que faz muita falta nos filmes com super-heróis, que é abordar essas criaturas extraordinárias utilizando seus poderes em situações cotidianas. Se falta luz e você consegue ‘acender’ o próprio corpo, por que não usar a mão como lanterna? E qual exatamente deve ser o intelecto de um homem para conseguir montar um berço sem passar raiva? É divertidíssimo ver esses super-humanos em situações extremamente humanas, e isso é um dos grandes destaques do filme. Esses pequenos momentos de pura simplicidade são de arrancar sorrisos até dos mais carrancudos.

O único ponto negativo nessa aventura do Quarteto é o tempo de duração. O filme é um dos mais curtos do MCU, então ele termina deixando aquele gosto de querer ver mais. Mais do filme, mais daquela realidade fantástica, mais daquelas pessoas e sociedade, mais de uma utopia digna dos Jetsons. É tudo tão bonito e fascinante que você torce para que o tal reboot prometido para o Universo Cinematográfico Marvel siga essa estética depois dos próximos longas dos Vingadores.
E isso se deve muito ao grande gênio que inspirou a essência desse filme: Jack Kirby. Lenda máxima das histórias em quadrinhos, o ilustrador co-criou os principais personagens da casa. Junto a Stan Lee, com quem terminou brigado, ele deu vida a ícones como Homem de Ferro, Thor, Hulk, os X-Men e o próprio Quarteto Fantástico. Além de ter criado o Capitão América junto a Joe Simon na década de 1940. Ele também definiu os rumos do universo cósmico da Marvel nos quadrinhos, usando e abusando das cores e psicodelia em suas artes.

O filme é uma grande carta de amor ao legado de Jack Kirby para a cultura americana e para a Marvel em si. Na década de 1960, a “Fórmula Marvel” de fazer quadrinhos foi revolucionária. Consolidada como um fenômeno justamente pela parceria entre Lee e Kirby, ela apostava na liberdade máxima aos ilustradores, que desenhavam as histórias sem terem um roteiro pronto. Dessa forma, eles criavam personagens, uniformes e situações para que roteiristas, como Stan Lee, criassem os argumentos, os diálogos. Claro que as ilustrações vinham de debates entre as duplas, gerando um trabalho bastante orgânico e humano. Porém, a genialidade dessa parceria rendeu batalhas jurídicas que se estenderam por décadas nos tribunais. Stan se definia como o criador desses personagens, enquanto Kirby e seus familiares brigavam na justiça pelo reconhecimento de seu trabalho na criação dos mesmos, o que incluiria uma porcentagem justa dos lucros relacionados a eles.
Por anos e anos, Kirby foi escanteado de seu pedestal conquistado com méritos no panteão da Marvel, mas os fãs de seu trabalho não deixaram que ele fosse esquecido. Esse filme é uma vitória para os admiradores e fãs das obras de Jack Kirby, seja pelas participações especiais que o homenageiam ou pela estética fabulosa que remete a suas obras, tudo é feito para honrá-lo. Ao fim, o longa ainda traz uma citação do quadrinista. É verdadeiramente lindo. É como ver um amigo de longa data enfim recebendo o devido reconhecimento pelo qual batalhou ao longo da vida. É uma pena que ele não esteja mais entre nós para ver aonde sua arte o levou.

Enfim, Quarteto Fantástico: Primeiros Passos pode não ser o melhor filme do Universo Cinematográfico Marvel – a trilogia Guardiões da Galáxia segue no topo -, mas certamente é o mais legal. Seu desprendimento daquele realismo chato para abraçar o fantástico como regra, e a homenagem viva a Jack Kirby são um deleite para os fãs, que enfim têm um filmaço do Quarteto Fantástico para chamar de seu. Ah sim, o longa tem duas cenas pós-créditos. A primeira é sensacional para quem liga para continuidade e futuro do MCU, já a segunda é um presentão para os fãs da Marvel em suas diversas mídias.