Se Matt Groening se viu diante de um complicado terreno na construção da primeira parte de ‘(Des)Encanto’ e falhou de maneiras amadoras, por assim dizer, é fato comentar que a segunda leva de episódios representou uma considerável melhora para a qualidade da série. Na parte final de sua temporada de estreia, o showrunner e criador – que conquistou o público com a sagaz e ácida narrativa de produções como ‘Futurama’ e ‘Os Simpsons’ – nos convida para retornar à mística e um tanto quanto diferente Terra dos Sonhos (também conhecida como Dreamland), oferecendo a seu público os corolários de uma traição inesperada que colocou todo o reino à mercê da poderosa e recém-trazida à vida Rainha Dagmar (Sharon Horgan).
Para aqueles que não se recordam, a jovem e rebelde princesa Tiabeanie (Abbi Jacobson), apelidada de Bean, teve que fazer uma difícil escolha entre salvar a mãe, Dagmar, condenada a viver o resto de seus dias na forma de pedra por causa de um poderoso feitiço; ou Elfo (Nat Faxon), seu inocente e crédulo companheiro de viagens que esteve ao seu lado desde o princípio de sua jornada. Por sentir falta de uma figura materna em sua vida, Bean acabou escolhendo a primeira opção, mas não percebeu que Dagmar, na verdade, era a vilã da história. Sem deixar que os outros descobrissem, ela transformou todo o continente em pedra, deixando para trás seu marido, Zog (John DiMaggio), e levando a filha para a longínqua Maru.
É a partir daí que a história se desenrola e toma o que só podemos encarar como pouco tempo do que realmente esperaríamos: afinal, a anti-heroína protagonista se vê em uma espécie de segunda casa, obrigando a si mesma a se adaptar a um mundo abandonado, sem a companhia de seus amigos e tendo como únicos confidentes a mãe e os tios, feiticeiros da primeira parte que volta e meia apareciam para tentar controlar o destino de Bean – e que também invocaram o demônio Luci (Eric Andre) para corrompê-la. Entretanto, em meio a apressadas revelações e a reviravoltas incríveis (no sentido epistemológico do termo), ela se livra de um destino pior que a morte e decide abandonar esse lado da família em prol daqueles que verdadeiramente a amaram.
A princípio, Groening e seu time de roteiristas voltam a cometer deslizes óbvios, pecando inclusive no tocante ao envolvimento do público: as tramas e subtramas se aglutinam em um mesmo lugar de forma incompreensível, tomando forma apenas no momento em que Bean enfrenta Dagmar e decide se envolver numa missão para resgatar Elfo – e que a leva direto para o Inferno. Com a adição dessa não tão complexa subtrama, a série em si começa a retornar para os eixos e progride até culminar em um interessante season finale – tão interessante quanto o seu predecessor.
Em meio aos rápidos dez episódios (cujas construções são pensadas justamente para não cansar os espectadores), o nada ortodoxo trio de amigos também passa por um compreensível e muito bem-vindo amadurecimento que os obriga de forma quase imperceptível a abandonar certos aspectos de personalidade. Entretanto, não pense que o roteiro se vale de convencionalismos ou fórmulas prontas para permitir que isso ocorra: na verdade, tais sutilezas são engolfadas sem quaisquer escrúpulos em ácidos diálogos e em fragmentos que, na maioria das vezes, dizem muito mais do que nossos olhos podem ver. E não é surpresa, pois, que a produção em si mergulhe em uma deliciosa metalinguagem, abrindo espaço para que seu idealizador referencie a si mesmo sem se render a um completo e exagerado saudosismo cênico.
À medida que Bean percebe que sempre estará conectada à Terra dos Sonhos (não importe o quanto tente fugir de seu destino), ela se envolve em um recorrente desejo de independência, afastando-se de seus deveres como membro da Família Real e buscando por algo que realmente lhe dê prazer. Como resposta, Groening arquiteta em um breve capítulo uma jornada com começo, meio e fim no meio teatral – aproveitando a proposital e anacrônica modernidade de suas loucuras para debater acerca de temas como desigualdade de gênero e feminismo.
Se o show peca no tocante à própria fluidez, ao menos não transforma suas controversas mensagens em um panfletário monólogo – exceto por obviedades que adicionam certos elementos dramáticos aos arcos de cada personagem. A adição constante de coadjuvantes, na verdade, serve como estrutura arquetípica para o desenrolar das tramas, até mesmo para o esquecido Derek (Tress MacNeille), o príncipe-anfíbio herdeiro do trono. E, em uma relação de causa e consequência adornada com certos fillers próprios de uma delineação antológica (já vista em iterações similares), não podemos deixar de nos chocar com a insurgência dos surpreendentes episódios finais.
Além de expandir a mitologia e cultivar um terreno para anos futuros, a segunda parte de ‘(Des)Encanto’ representa um considerável progresso para essa distorcida e hilária perspectiva das famosas “novelas de cavalaria”. Se não acerta em todos os aspectos, como fica claro em gritantes, porém pontuais momentos, ao menos Matt Groening colabora para nos deixar animados para as próximas temporadas. E, no final das contas, é isso o que realmente importa.