Neil Gaiman é um dos autores mais prolíficos da contemporaneidade e já eternizou diversos clássicos – como ‘Coraline’, ‘Deuses Americanos’, ‘Os Filhos de Anansi’ e, é claro, a obra-prima ‘Sandman’. Em 2022, a Netflix lançou a ótima adaptação em live-action dos quadrinhos, recebendo elogios pela fidelidade ao material, pelas atuações do elenco protagonista e coadjuvante e pela qualidade estética e técnica da obra – o que nos deixou muito animados para a segunda temporada. Infelizmente, em meio a inúmeras polêmicas em que Gaiman se envolveu, a gigante do streaming resolveu finalizar a série com um ciclo de encerramento dividido em duas partes, cuja leva inicial chegou ao serviço hoje, 3 de julho.
E a única coisa que podemos pensar com o lançamento desses seis primeiros episódios é que sentiremos muita falta de acompanhar as perigosas e sobrenaturais aventuras de Morpheus (Tom Sturridge) quando a atração for oficialmente finalizada no final deste mês.

Enquanto a iteração inicial teve a árdua tarefa de nos apresentar ao universo criado por Gaiman, delineando incontáveis personagens para entendermos a progressão dos arcos e de que forma as reviravoltas se aglutinam em um belíssimo reflexo do ser humano em solidão e em comunidade – e de que maneira o comum se transforma em extraordinário. Trazendo elementos conhecidos de narrativas fantásticas e aventurescas, a segunda temporada abre com um pouco mais de “leveza”, por assim dizer, levando o tempo necessário para delinear as tramas que se desenrolam à nossa frente: é claro que Morpheus, também conhecido como Sonho e parte d’Os Perpétuos, é o nosso foco – e é apaixonante a maneira como o showrunner Allan Heinberg humaniza ainda mais essa entidade impalpável e muito poderosa.
O novo ciclo se inicia com uma reunião d’Os Perpétuos, evento que impulsiona Morpheus a consertar erros crassos cometidos em um passado muito remoto – como, por exemplo, regressar ao Inferno e resgatar Nada (Deborah Oyelade), a Rainha do Primeiro Povo, que permanece como prisioneira no submundo há mais de dez mil anos, sendo constantemente torturada, pelo motivo de ter rejeitado o Rei dos Sonhos e atraído sua ira. Porém, ao confrontar Lúcifer (Gwendoline Christie), ele se vê com mais um problema em mãos: o Anjo Caído resolve abdicar do trono infernal e dá a chave de seu reino às mãos de Morpheus, que, por sua vez, é bombardeado por inúmeras criaturas que desejam o controle desse território tão temido (incluindo divindades nórdicas, seres feéricos, agentes do caos e lordes demoníacos).

Eventualmente, Morpheus consegue chegar à difícil decisão de entregar a chave do Inferno de volta aos anjos mensageiros do Paraíso – e, ao mesmo tempo, resgata Nada apenas para perceber que ela não irá perdoá-lo pela traição e que a poderosa monarca deseja conhecer o mundo dos despertos por conta própria e aproveitando de sua liberdade. E é claro que nosso protagonista não permanece muito tempo em luto e em silêncio, visto que, assim que tais problemas se dissipam, sua irmã Delírio (Esmé Creed-Miles) aparece à porta de seu suntuoso castelo implorando para que ele a ajude a encontrar Destruição (Barry Sloane), um outro Perpétuo que desbandou da família há mais de três séculos e não quer ser encontrado – e, com sorte, cruzar caminho com Nada no plano terreno.
Como podemos perceber, são inúmeras as narrativas que se desenvolvem na primeira metade da 2ª temporada. Todavia, diferente do que poderíamos imaginar, notamos uma cautela aplaudível para garantir que os arcos sejam finalizados de maneira íntegra e palpável, sem se valer de ocasionalismos cansativos e inexplicáveis e fornecendo a dose de drama, tragicomédia e suspense que esperamos de uma obra como essa. Sturridge, marcado pela conhecida expressão franzina e carrancuda, parece mais solto e menos preocupado com sua rendição como Sandman, enquanto Creed-Miles rouba nossa atenção como a desiludida Delírio, singrando entre a loucura e a sanidade com fluidez notável. E, em meio a inúmeras estreias no time de atores, Sloane e Indya Moore (esta dando vida à adorável Wanda), fazem um trabalho magnífico e digno de nota.

Uma das tramas mais singelas e tocantes envolve Morpheus e seu filho, Orfeu (Ruairi O’Connor), em uma belíssima recontagem da clássica lenda história de Orfeu e Eurídice – que traz uma revitalização e uma visão remodelada da mitologia grega e que permite que tanto Sturridge e O’Connor desfrutem de uma química apaixonante e dilacerante, principalmente pelo modo como o enredo ganha vida. E, acompanhando os dois nessa jornada de sacrifício, família e ressentimentos, temos a presença sempre certeira de Kirby Howell-Baptiste e Jenna Coleman reprisando seus papéis como Morte e Johanna Constantine, respectivamente.
A primeira parte do ciclo de encerramento de ‘Sandman’ mantém o sólido nível de qualidade da temporada de estreia e traz elementos novos que, em momento algum, soam exagerados ou condescendentes – pelo contrário, apenas auxiliam na contínua exploração desse irretocável universo cosmológico. Agora, só podemos esperar para ver o que os criadores nos reservaram para a épica conclusão (e deixar que o gostinho agridoce de adeus comece a nos tomar conta).