domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | 4ª temporada de ‘The Crown’ é a melhor da série até agora

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“Pesada sempre se encontra a fronte coroada”.

A emblemática frase proferida por Henrique IV na peça homônima assinada por William Shakespeare serve de premissa atemporal para literários, dramaturgos e realizadores audiovisuais que resolvem voltar suas habilidades criativas para um retrato mais humanizado das monarquias mundiais – especialmente a realeza britânica, que constantemente ganha os holofotes com centenas de versões que apresentam perspectivas das mais diversas sobre seus complexos e controversos personagens. Entretanto, nenhuma produção conseguiu atingir tal objetivo como The Crown, drama da Netflix focado no reinado da icônica Rainha Elizabeth II.



Caminhando para o fim de mais um ciclo da mesma forma que fez com a vencedora do Emmy Claire Foy, chegou a vez da premiada Olivia Colman dizer adeus ao papel da monarca ao interpretá-la em um período extremamente conturbado de seu reinado (não que não houve outros). Saindo de uma incrível terceira temporada, o criador e showrunner Peter Morgan tinha bastante material com o qual trabalhar para dez episódios fresquinhos e recheados das mais chocantes reviravoltas e uma reflexão sobre os segredos que se escondem nas maciças paredes do Palácio de Buckingham e adjacências. E, conforme nos aproximamos de mais um evocativo season finale, as imprecisões históricas (que parecem mais vivas aqui do que em iterações predecessoras) não ofuscam a química estupenda de um elenco estelar e a sólida equipe técnico-artística que nos guia com cautela e emoção através da segunda parte da era elizabetana.

Picture shows: Margaret Thatcher (GILLIAN ANDERSON) **VANITY FAIR EXCLUSIVE**

De fato, o anúncio do quarto ciclo veio acompanhado de expectativas majestosas, ainda mais pela introdução de figuras importantíssimas para a compreensão dessa intrincada engrenagem real: Princesa Diana, a queridinha do público e uma das principais denunciadoras da obsolescência britânica, e Margaret Thatcher, cruel articuladora do neoliberalismo inglês que já havia sido levada para as telonas por Meryl Streep, rendendo-lhe mais um Oscar de Melhor Atriz. Agora, coube a dois outros nomes encarnarem essas poderosas mulheres – a novata Emma Corrin como Lady Di em uma rendição espetacular e memorável; e ninguém menos que a simplesmente aplaudível Gillian Anderson como Thatcher e no melhor papel de sua carreira até hoje.

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Se The Crown nos ensinou alguma coisa, é que nada é o que parece ser. A pose quase eclesiástica com a qual os membros da coroa britânica surgem em público – com sua aparente inexpressividade e uma calculista frieza estampada em rostos plásticos – é apenas uma máscara para todos os problemas que se alastram pelos gigantescos corredores de sua morada e até mesmo para aqueles que ousam chegar mais perto. A análise melodramática, em seu melhor sentido, abre portas para recontar uma história incessantemente contada nas salas de aula e, com firmeza e convicção assustadoras, convidam os espectadores a ver as coisas de outra forma – e essa oscilação de perspectiva foi exatamente o que trouxe esse enlace sem precedentes em um enredo envolvente e arrepiante.

Elizabeth (Colman) enfrenta seu primeiro grande obstáculo com a eleição de Thatcher ao cargo de primeira-ministra, cujas políticas incisivas e sua impetuosidade a deixaram conhecida como Dama de Ferro. Na verdade, Thatcher veio como força de combate para enfrentar a realeza e seu principal símbolo, constantemente criticando hábitos desnecessários e “cruéis” por parte da família e entrando em conflito com certas decisões humanitárias demais que impediriam a prevalência e o retorno à glória do outrora imbatível Reino Unido. Não é surpresa, pois, que os episódios tragam essas subtramas ao plano frontal e façam o máximo para explorar o que deve ser explorado – com certas mudanças que, para o bem ou para o mal, enfeitam a fórmula do drama seriado com dinamismo instigante.

Como se não bastasse, o casamento do filho mais velho da Rainha, Charles (Josh O’Connor), com a tímida Diana, toma boa parte dos capítulos – não apenas o matrimônio em si, mas a ascensão e a queda de um casal problemático e tóxico ao extremo. Diana e Charles se conhecem ao acaso e logo se apaixonam – apenas para descobrirem que, com exceção de uma história levemente semelhante, não têm nada em comum. Corrin se transmuta na Princesa com simetria assustadora, seja no modo em que sorria para os fotógrafos e jornalistas, seja em sua narcótica beleza que encantava qualquer um que quisesse conhecê-la; O’Connor, por sua vez, traz um lado sombrio para Charles que não víamos a algum tempo, revelando um lado pirracento e mimado que não aceitava que sua esposa tivesse mais atenção da mídia do que o herdeiro do trono. Ambos unem forças para uma exuberante montanha-russa de conivência, traição e resignação que, no final das contas, era tudo o que esperávamos de uma produção deste calibre.

Enquanto a imagética da série não foge muito do que havíamos visto – optando por cores mais frias em momentos mais dramáticos e uma espetacularização propositalmente forçada de teatralidades e um glamour invejável em sequências pacíficas ou celebratórias -, deve-se notar a competência de um roteiro que não peca em deixar os personagens em defasagem. Helena Bonham Carter traz uma amarga maturidade ao regressar para o papel da Princesa Margaret, que percebe que sua importância na família vem sendo posta em xeque com dezenas de intermináveis protocolos tradicionalistas; Tobias Menzies se mostra como um camaleão performático ao nos fazer odiá-lo como o petulante Príncipe Philip; e Erin Doherty retorna numa fantástica interpretação de uma compreensiva e exausta Princesa Anne.

The Crown acerta em cheio com um quarto ano bombástico, repleto de intrigas emocionantes que são levados com pungência cirúrgica às telas. O esboço adaptado da monarquia britânica, por mais denso que se torne a cada episódio, faz o máximo para se tornar acessível ao público e, com uma clareza que não se vê em muitas produções contemporâneas, traça uma linha em direção a uma catártica realização de que, no fundo, tudo é válido quando falamos de poder.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Caminhando para o fim de mais um ciclo da mesma forma que fez com a vencedora do Emmy Claire Foy, chegou a vez da premiada Olivia Colman dizer adeus ao papel da monarca ao interpretá-la em um período extremamente conturbado de seu reinado (não que não houve outros). Saindo de uma incrível terceira temporada, o criador e showrunner Peter Morgan tinha bastante material com o qual trabalhar para dez episódios fresquinhos e recheados das mais chocantes reviravoltas e uma reflexão sobre os segredos que se escondem nas maciças paredes do Palácio de Buckingham e adjacências. E, conforme nos aproximamos de mais um evocativo season finale, as imprecisões históricas (que parecem mais vivas aqui do que em iterações predecessoras) não ofuscam a química estupenda de um elenco estelar e a sólida equipe técnico-artística que nos guia com cautela e emoção através da segunda parte da era elizabetana.

Picture shows: Margaret Thatcher (GILLIAN ANDERSON) **VANITY FAIR EXCLUSIVE**

De fato, o anúncio do quarto ciclo veio acompanhado de expectativas majestosas, ainda mais pela introdução de figuras importantíssimas para a compreensão dessa intrincada engrenagem real: Princesa Diana, a queridinha do público e uma das principais denunciadoras da obsolescência britânica, e Margaret Thatcher, cruel articuladora do neoliberalismo inglês que já havia sido levada para as telonas por Meryl Streep, rendendo-lhe mais um Oscar de Melhor Atriz. Agora, coube a dois outros nomes encarnarem essas poderosas mulheres – a novata Emma Corrin como Lady Di em uma rendição espetacular e memorável; e ninguém menos que a simplesmente aplaudível Gillian Anderson como Thatcher e no melhor papel de sua carreira até hoje.

Se The Crown nos ensinou alguma coisa, é que nada é o que parece ser. A pose quase eclesiástica com a qual os membros da coroa britânica surgem em público – com sua aparente inexpressividade e uma calculista frieza estampada em rostos plásticos – é apenas uma máscara para todos os problemas que se alastram pelos gigantescos corredores de sua morada e até mesmo para aqueles que ousam chegar mais perto. A análise melodramática, em seu melhor sentido, abre portas para recontar uma história incessantemente contada nas salas de aula e, com firmeza e convicção assustadoras, convidam os espectadores a ver as coisas de outra forma – e essa oscilação de perspectiva foi exatamente o que trouxe esse enlace sem precedentes em um enredo envolvente e arrepiante.

Elizabeth (Colman) enfrenta seu primeiro grande obstáculo com a eleição de Thatcher ao cargo de primeira-ministra, cujas políticas incisivas e sua impetuosidade a deixaram conhecida como Dama de Ferro. Na verdade, Thatcher veio como força de combate para enfrentar a realeza e seu principal símbolo, constantemente criticando hábitos desnecessários e “cruéis” por parte da família e entrando em conflito com certas decisões humanitárias demais que impediriam a prevalência e o retorno à glória do outrora imbatível Reino Unido. Não é surpresa, pois, que os episódios tragam essas subtramas ao plano frontal e façam o máximo para explorar o que deve ser explorado – com certas mudanças que, para o bem ou para o mal, enfeitam a fórmula do drama seriado com dinamismo instigante.

Como se não bastasse, o casamento do filho mais velho da Rainha, Charles (Josh O’Connor), com a tímida Diana, toma boa parte dos capítulos – não apenas o matrimônio em si, mas a ascensão e a queda de um casal problemático e tóxico ao extremo. Diana e Charles se conhecem ao acaso e logo se apaixonam – apenas para descobrirem que, com exceção de uma história levemente semelhante, não têm nada em comum. Corrin se transmuta na Princesa com simetria assustadora, seja no modo em que sorria para os fotógrafos e jornalistas, seja em sua narcótica beleza que encantava qualquer um que quisesse conhecê-la; O’Connor, por sua vez, traz um lado sombrio para Charles que não víamos a algum tempo, revelando um lado pirracento e mimado que não aceitava que sua esposa tivesse mais atenção da mídia do que o herdeiro do trono. Ambos unem forças para uma exuberante montanha-russa de conivência, traição e resignação que, no final das contas, era tudo o que esperávamos de uma produção deste calibre.

Enquanto a imagética da série não foge muito do que havíamos visto – optando por cores mais frias em momentos mais dramáticos e uma espetacularização propositalmente forçada de teatralidades e um glamour invejável em sequências pacíficas ou celebratórias -, deve-se notar a competência de um roteiro que não peca em deixar os personagens em defasagem. Helena Bonham Carter traz uma amarga maturidade ao regressar para o papel da Princesa Margaret, que percebe que sua importância na família vem sendo posta em xeque com dezenas de intermináveis protocolos tradicionalistas; Tobias Menzies se mostra como um camaleão performático ao nos fazer odiá-lo como o petulante Príncipe Philip; e Erin Doherty retorna numa fantástica interpretação de uma compreensiva e exausta Princesa Anne.

The Crown acerta em cheio com um quarto ano bombástico, repleto de intrigas emocionantes que são levados com pungência cirúrgica às telas. O esboço adaptado da monarquia britânica, por mais denso que se torne a cada episódio, faz o máximo para se tornar acessível ao público e, com uma clareza que não se vê em muitas produções contemporâneas, traça uma linha em direção a uma catártica realização de que, no fundo, tudo é válido quando falamos de poder.

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