quarta-feira , 20 novembro , 2024

Crítica | A Cidade dos Piratas – Animação bem-feita inspirada nos quadrinhos da Laerte

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Criada em 1983, a tirinha ‘Piratas do Tietê’ fez sucesso imediato, alçando seu criador, Laerte Coutinho, a publicar em renomados jornais, ganhando uma versão reunida em livro em 1990. Três anos depois, surge a primeira ideia de adaptação cinematográfica pelo diretor Otto Guerra, que só veio ser concluída agora, em 2019, quando chega aos cinemas. Durante esse tempo, muita coisa mudou – no mundo, nos leitores e, principalmente, em Laerte, que abraçou sua identidade transgênero e hoje assina como A cartunistA Laerte Coutinho, e que durante exatamente este período repensou sua obra, releu-a e hoje apresenta questões e personagens nas quais ela (e o público) se identificam muito mais.



É preciso ter essa trajetória em mente porque é justamente este o mote de ‘A Cidade dos Piratas’, longa de animação baseado na obra e na biografia da Laerte nesses últimos trinta anos. O roteiro é construído perpassando personagens emblemáticos da obra da cartunista, entrelaçando temas que, com o passar do tempo, foram inquietando Laerte ao ponto de alguns de seus projetos terem sido encerrados. O roteiro a oito mãos brinca com essa inquietude, esses personagens que, em certa medida, são abandonados e remoldados pela sua criadora, e que também se sentem inseguros com relação ao seu futuro. Exemplo disso é o próprio Capitão dos Piratas, que diz “não ser um pirata, mas sim um deficiente físico”, apontando para sua perna de pau.

A trama é dividida em cinco núcleos, todos bastante marcados com cores bem específicas para facilitar o espectador entender qual história está sendo abordada naquele momento. A parte dos piratas, mais antiga, é em preto e branco; a parte de crítica política tem tons de magenta; a parte de Otto e sua metalinguagem comentando a própria elaboração do longa é mais colorida; a parte do Minotauro possui tons mais ciano, magenta, mais frios; e a parte do sujeito com dupla identidade mescla o ciano com magenta pontual. Por vezes há interseccionalidade nas tramas, também intercaladas por partes de entrevistas e depoimentos de Laerte, que ajudam a iluminar a percepção de um trabalho em eterna construção. Alguns núcleos ganham narração especial de Matheus Nachtergaele e Marco Ricca, que condizem com os personagens aos quais emprestam suas vozes, o que demonstra mais uma preocupação de Otto com a construção desses núcleos.

O diretor Otto Guerra foi bastante cuidadoso em retratar a transição de uma artista em ebulição, transpondo para o seu longa as inquietudes efervescentes de Laerte, mas também dando espaço para a crueza latente bastante presente no início de carreira da cartunista. Se por um lado os temas e os personagens foram repensados, por outro há espaço para a brutalidade cotidiana que as interações sociais fazem na gente – silenciando, chocando, maltratando, pisando. A recorrência de símbolos fálicos é um pouco cansativa, mas também demonstra o quanto a sociedade é obcecada pelo aspecto físico enquanto demarcador de gênero.

Com uma trilha sonora escolhida a dedo, ‘A Cidade dos Piratas’ é uma animação bem-feita e que conta com sinceridade a trajetória de uma artista “sem a proteção de uma dor que possa ser curada”, mas em constante busca por si mesma. Mas é preciso conhecer os quadrinhos e a vida da Laerte, pois, do contrário, o roteiro experimental do longa não será compreendido.

Laerte é, hoje, uma das quadrinistas mais famosas e queridas do Brasil, que ultrapassou sua geração e hoje atende a demanda de jovens que buscam em seu trabalho a voz mais apurada de alguém em quem se espelham. E o fato de fazerem uma animação baseada na sua obra e que dá espaço para ela mesma falar de si é um presente para a cultura brasileira.

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Janda Montenegrohttp://cinepop.com.br
Escritora, autora de 6 livros, roteirista, assistente de direção. Doutora em Literatura Brasileira Indígena UFRJ.

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Criada em 1983, a tirinha ‘Piratas do Tietê’ fez sucesso imediato, alçando seu criador, Laerte Coutinho, a publicar em renomados jornais, ganhando uma versão reunida em livro em 1990. Três anos depois, surge a primeira ideia de adaptação cinematográfica pelo diretor Otto Guerra, que só veio ser concluída agora, em 2019, quando chega aos cinemas. Durante esse tempo, muita coisa mudou – no mundo, nos leitores e, principalmente, em Laerte, que abraçou sua identidade transgênero e hoje assina como A cartunistA Laerte Coutinho, e que durante exatamente este período repensou sua obra, releu-a e hoje apresenta questões e personagens nas quais ela (e o público) se identificam muito mais.

É preciso ter essa trajetória em mente porque é justamente este o mote de ‘A Cidade dos Piratas’, longa de animação baseado na obra e na biografia da Laerte nesses últimos trinta anos. O roteiro é construído perpassando personagens emblemáticos da obra da cartunista, entrelaçando temas que, com o passar do tempo, foram inquietando Laerte ao ponto de alguns de seus projetos terem sido encerrados. O roteiro a oito mãos brinca com essa inquietude, esses personagens que, em certa medida, são abandonados e remoldados pela sua criadora, e que também se sentem inseguros com relação ao seu futuro. Exemplo disso é o próprio Capitão dos Piratas, que diz “não ser um pirata, mas sim um deficiente físico”, apontando para sua perna de pau.

A trama é dividida em cinco núcleos, todos bastante marcados com cores bem específicas para facilitar o espectador entender qual história está sendo abordada naquele momento. A parte dos piratas, mais antiga, é em preto e branco; a parte de crítica política tem tons de magenta; a parte de Otto e sua metalinguagem comentando a própria elaboração do longa é mais colorida; a parte do Minotauro possui tons mais ciano, magenta, mais frios; e a parte do sujeito com dupla identidade mescla o ciano com magenta pontual. Por vezes há interseccionalidade nas tramas, também intercaladas por partes de entrevistas e depoimentos de Laerte, que ajudam a iluminar a percepção de um trabalho em eterna construção. Alguns núcleos ganham narração especial de Matheus Nachtergaele e Marco Ricca, que condizem com os personagens aos quais emprestam suas vozes, o que demonstra mais uma preocupação de Otto com a construção desses núcleos.

O diretor Otto Guerra foi bastante cuidadoso em retratar a transição de uma artista em ebulição, transpondo para o seu longa as inquietudes efervescentes de Laerte, mas também dando espaço para a crueza latente bastante presente no início de carreira da cartunista. Se por um lado os temas e os personagens foram repensados, por outro há espaço para a brutalidade cotidiana que as interações sociais fazem na gente – silenciando, chocando, maltratando, pisando. A recorrência de símbolos fálicos é um pouco cansativa, mas também demonstra o quanto a sociedade é obcecada pelo aspecto físico enquanto demarcador de gênero.

Com uma trilha sonora escolhida a dedo, ‘A Cidade dos Piratas’ é uma animação bem-feita e que conta com sinceridade a trajetória de uma artista “sem a proteção de uma dor que possa ser curada”, mas em constante busca por si mesma. Mas é preciso conhecer os quadrinhos e a vida da Laerte, pois, do contrário, o roteiro experimental do longa não será compreendido.

Laerte é, hoje, uma das quadrinistas mais famosas e queridas do Brasil, que ultrapassou sua geração e hoje atende a demanda de jovens que buscam em seu trabalho a voz mais apurada de alguém em quem se espelham. E o fato de fazerem uma animação baseada na sua obra e que dá espaço para ela mesma falar de si é um presente para a cultura brasileira.

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