Nada consegue superar o inacreditável que é algumas coisas que acontecem na vida real. Mas há histórias da ficção que beiram mui proximamente ao que chamamos de vida real. Episódios com os quais o espectador se relaciona, por sentir que já aconteceu ou poderia ter acontecido com ele ou ela, ou cuja trama se desenrola de maneira tão coerente, que se torna totalmente crível para quem assiste, afinal, os eventos poderiam mesmo terem sucedido daquela maneira. Essa é a sensação geral que temos ao assistir ao filme chileno ‘A Contadora de Filmes’, uma história de ficção que facilmente poderia ter sido baseada em eventos reais, e que estreia no circuito exibidor nacional no próximo dia 28 após sessões antecipadas no Festival do Rio.
Deserto do Atacama, Chile, fim da década de 1950. Num pequeno vilarejo embicado no Pampa chileno, nos arredores de uma mineradora alemã, vivem algumas dezenas de pessoas que trabalham na mineradora administrada por Hauser (Daniel Brühl), dentre as quais a família de Medardo (Antonio de la Torre). O melhor dia para essa família é os domingos, quando todos vão ao cinema do povoado assistir ao mais novo lançamento de Hollywood. Porém, quando a situação financeira da família fica debilitada, a ida ao cinema deve ser racionada, e, aos poucos, é decidido que María Margarita (Alondra Valenzuela), a caçula, irá ao cinema e depois contará a história do filme a todos. Acontece que a menina reconta tudo tão lindamente, que comove a todos, e rapidamente todo o povoado fica sabendo, convertendo-a na contadora de filmes oficial da localidade.
Com quase duas horas de duração, ‘A Contadora de Filmes’ atravessa a vida de uma família de seis pessoas isolada em um povoado onde o cinema era a principal conexão com o mundo. Vemos desde as crianças em seus sonhos, até o declínio da família e a resolução de cada um já na juventude. Nesse sentido, é evidente que, tendo uma boa história, é possível fazer um filme de duas horas que não enrola o espectador e nem ultrapassa o tempo razoável de uma exibição.
Baseado na obra homônima de Hernán Rivera Letelier (que saiu no Brasil pela editora Cosac & Naif), o roteiro de Rafa Russo, Isabel Coixet e (surpresa!) e do brasileiro Walter Salles acertadamente dedica mais tempo de desenvolvimento no período da infância da protagonista María Margarita do que no arco final. Assim, a dupla de atrizes que a interpreta criança e jovem – Alondra Valenzuela e Sara Becker – se destacam e se desenvolvem no tempo que a personagem precisa, encantando o espectador com seu maravilhamento pelo cinema e fazendo com que a gente sinta tudo que ela está sentindo.
A diretora Lone Scherfig captura com muita sensibilidade o lúdico de ‘A Contadora de Filmes’ e o transforma em sonho as cenas em que a realidade ao redor gritam o contrário, e sem carregar no drama. A história tem uma ideia muito original e entrelaça bem o desabrochar artístico da protagonista com o panorama histórico que a rodeia e mesmo a evolução dos eletrônicos. María Margarita é, em si, as transformações de um país, de um gênero, da tecnologia, da História, uma estátua de sal que brilha como vagalume.
Sensível, emocionante e apaixonado pelo cinema, ‘A Contadora de Filmes’ arrebata a gente desde o início. Imperdível para todos aqueles que amam a sétima arte.