Ensaio para a volta por cima
Para entender um filme mais a fundo, é necessário estar ciente de seu contexto – e o que existe nos mais variados âmbitos de sua produção. Casey Affleck, irmão mais novo do ator e diretor Ben Affleck, estreia com este A Luz no Fim do Mundo na direção de longas de ficção, seguindo os passos do “big brother”. Além disso, Casey também roteiriza e protagoniza o drama pós-apocalíptico.
O ator andava meio sumido desde sua vitória no Oscar como melhor ator pelo filme Manchester à Beira Mar (2017), aparecendo em produções menores e independentes – algumas, inclusive, elogiadíssimas, como Sombras da Vida (2017), mas sem qualquer abrangência do grande público ou até mesmo de muitos cinéfilos, por se tratarem de produções quase obscuras.
O motivo deste autoimposto exílio foi a acusação de assédio que o ator sofreu de duas funcionárias da equipe de produção de um de seus filmes, bem na época de sua campanha rumo ao Oscar. Casey fez acordo, as jovens retiraram as acusações públicas e o ator terminou com o prêmio da Academia para decorar sua casa. No entanto, nos dias de hoje algo do tipo pode verdadeiramente manchar o currículo de um artista – alguns permanentemente. Não foi o caso com Affleck.
Justamente por isso, sabendo de todos os fatos, a premissa desse longa escrito e dirigido pelo ator causa estranheza e curiosidade. Começamos pela sinopse: na qual uma epidemia acabou com todas as mulheres da face da Terra. Sugestivo? Calma. Na história de Affleck para este futuro pós-apocalíptico não existem mais mulheres em nosso planeta devido a uma doença que só atacou os seres humanos de cromossomo XX. Até aí podemos achar maquiavelicamente estranha esta mensagem.
Porém, o enredo continua, e seguimos para entender que sim, existe uma mulher neste mundo – e ela é filha justamente do protagonista, vivido por Casey Affleck. A trama gira em torno da superproteção do pai por sua filha, a quem trata como um menino a fim de que ninguém, das poucas pessoas com quem têm contato – nesta realidade devastada –, saiba se tratar de uma fêmea. Afinal, sabe-se lá o que o desespero é capaz de fazer numa situação destas. Assim, a coisa muda de figura, e temos Casey Affleck na condição de protetor da única mulher do mundo, que igualmente poderá ser a chave de sua salvação.
Além destas conotações abertas a serem interpretadas de forma mais áspera, Affleck faz questão de adereçar assuntos delicados e ser o mensageiro do politicamente correto. Em uma cena – um dos melhores momentos do longa – ele explica para a pequena Anna Pniowsky (ótima em cena), que vive sua filha, que não existe cor de pele melhor que a outra, e que é errado julgar uma pessoa por isso; assim como não devemos menosprezar as mulheres, nem tratá-las como objetos como “bonecas”. Logo, ele emenda tentando, muito sem jeito, deixar claro para a cria de onde vêm os bebês.
Fora esse paralelo para além das telas, A Luz no Fim do Mundo se comporta muito como A Estrada (2009), escrito por Cormac McCarthy e dirigido por John Hillcoat, no qual um pai (Vigggo Mortensen) faz de tudo para proteger seu filho numa cruel realidade na qual a Terra foi devastada e tudo o que restou foram homens desesperados. Até mesmo a figura da ex-mulher que só aparece através de flashbacks as obras compartilham (trocando Charlize Theron de A Estrada, por Elisabeth Moss aqui).
E se A Estrada possui inúmeros méritos que o transformaram em obra cult, este A Luz no Fim do Mundo não chega atrás, trazendo momentos tensos, situações dramáticas e, acima de tudo, muita reflexão sobre o que nos faz humanos e até onde iríamos para proteger os nossos – quando o “mundo cão” de fato se fizer presente. Fora isso, a química entre pai e filha dos atores está perfeita, desde pequenos momentos onde Affleck apenas conta histórias de ninar para a menina, de forma estática deitados na cama, até quando o bicho pega de verdade – como o trecho em que são perseguidos na casa por invasores.
A Luz no Fim do Mundo é um trabalho delicado, singelo, cercado por uma atmosfera espinhosa. O filme marca uma estreia potente de Affleck como diretor, se mostrando preparado para passos mais ambiciosos. O longa é como uma flor que nasce na lama, a qual iremos igualmente admirar por sua beleza.