Sob uma encantadora e aconchegante fotografia marcada por tons vibrantes e solares, o cineasta e ator Kenneth Branagh anuncia a chegada de mais um mistério na trajetória do perspicaz investigador Hercule Poirot. O colorido dos prédios históricos e a delicadeza que emana de Veneza formam aqui um contraste poderoso com o sombrio caso de uma jovem que morrera sob circunstâncias misteriosas e sobrenaturais. E no novo capítulo adaptado da icônica escritora Agatha Christie, intitulado A Noite das Bruxas (roteirizado por Michael Green), as sombras contrapõem a luz e o leve toque de humor que já vimos no passado abre espaço para um suspense que flerta com o horror, ainda que pouco nos aterrorize.
A Noite das Bruxas é Branagh experimentando dentro do próprio gênero que conhece muito bem. Mudando um pouco os rumos narrativos tomados nos dois capítulos anteriores – Assassinato no Expresso Oriente e Morte no Nilo -, o vencedor do Oscar opta por explorar a trama sobrenatural por uma ótica mais conceitual, dramática e horripilante. Abusando dos jumpscares, o também intérprete do amado Poirot faz do longa uma oportunidade valiosa de também explorar sua estética diretorial. Ao lado do seu parceiro profissional de longa data, o diretor de fotografia Haris Zambarloukos, Kenneth dirige lindamente, sabe destacar os melhores pontos de Veneza e consegue construir a atmosfera necessária para calcar seu terror.
E ainda que a sequência não seja, por essência, um filme de terror que surpreenda os amantes de sustos, a produção consegue ser uma ótima combinação entre o gênero em questão e o thriller, se debruçando nas poderosas e excelentes performances de um elenco de peso, formado por Tina Fey, Michelle Yeoh, Jamie Dornan e Kyle Allen. À sua maneira, cada um dos protagonistas acrescenta um valor ainda maior para trama, fazendo de A Noite das Bruxas uma vitrine de personagens muito bem construídos e cativantes. Nesse cenário, Branagh brilha uma vez mais com um sotaque francês arrastado e uma linguagem corporal impecável. E com um trabalho técnico belíssimo, marcado por um constante jogo de ângulos como o plongée e o contra-plongée, o filme consegue nos embalar nas reações e motivações de seus personagens, nos proporcionando uma experiência menos estática e mais envolvente.
E talvez um dos maiores problemas do thriller seja exatamente sua montagem. Muito picotada, na tentativa de dar ênfase aos cortes rápidos adotados por Branagh e Zambarloukos, ela acaba chamando a atenção de forma mais negativa, salientando uma falta de fluidez entre as cenas e suas sequências. Um detalhe completamente perceptível aos mais entendedores de direção, ele provavelmente passará despercebido aos olhos do público geral e, ainda que de certa forma revele a falta de precisão na pós-produção do filme, pouco afetará a experiência como um todo – ainda que ela não seja tão ajustada como de fato deveria ser.
Com um belo design de produção que bebe das fontes culturais e artísticas da Itália da pós Segunda Guerra Mundial e figurinos clássicos que exploram o requinte da alfaiataria antiga, a adaptação do livro de Agatha Christie pode não agradar aos fãs mais ferrenhos da escritora, mas funciona como um excelente entretenimento blockbuster. Trazendo um valor de produção que se revela nas poderosas tomadas em preto e branco em contraste com a solares cenas de Veneza banhada pelos primeiros raios de sol da manhã, A Noite das Bruxas é um programa prazeroso para os fãs de mistério. E ainda que tenha seus erros técnicos e não seja de uma exuberância absoluta, é sem sombra de dúvidas Kenneth Branagh e Haris Zambarloukos em sua melhor forma, no auge de uma linda e longeva parceria cinematográfica.