Em 2017, Kenneth Branagh dava origem a uma inesperada franquia baseada nos escritos da lendária mestra do crime, Agatha Christie, com uma divertida e subestimada adaptação de ‘Assassinato no Expresso do Oriente’. Cinco anos mais tarde, ele retornaria à cadeira de direção e ao papel do detetive Hercule Poirot para ‘Morte no Nilo’, consagrando uma saga que ganharia mais capítulos; dito e feito, ‘A Noite das Bruxas’ foi escolhido como a próxima investida cinematográfica de Branagh, nos levando do Egito para a Itália em uma releitura sinistra de um dos romances menos aclamados de Christie e que, décadas após seu lançamento, recebeu uma reavaliação bastante positiva que seria traduzida pelas competentes mãos tanto do cineasta quanto de um elenco estelar.
Nessa nova aventura, Poirot (Branagh) está aposentado e vive sozinho na Itália, recusando-se a atender novos chamados de crimes complexos e assassinatos mórbidos. Todavia, ele é visitado por uma amiga de longa data, a escritora Ariadne Oliver (Tina Fey), que o incita a participar de uma festa de Dia das Bruxas após dizer que viu “coisas de outro mundo” que a fizeram quase abandonar seu lado cético. Determinado a entender o que está acontecendo, Poirot e Ariadne viajam para um imponente Palazzo em Veneza, onde são recebidos pela proprietária Rowena Drake (Kelly Reilly), que sofre com o suicídio de sua única filha e contratou uma médium, Joyce Reynolds (Michelle Yeoh) para tentar contatá-la do além e, talvez, colocar um fim em sua contínua miséria.
Todavia, as coisas saem do controle quando, após Joyce incorporar o espírito da filha, Poirot descobre uma farsa envolvendo a médium e dois asseclas que utilizam quinquilharias tecnológicas e efeitos práticos para dar vida aos surpreendentes acontecimentos, Nicholas (Ali Khan) e Desdemona Holland (Emma Laird), irmãos órfãos que foram acolhidos pela clarividente. Enquanto não acredita nas falcatruas de Joyce, porém, o detetive é forçado a sair de sua tão merecida aposentadoria após a médium ser brutalmente assassinada – levando-o a crer que algo se esconde por trás da melancólica narrativa do Palazzo. É a partir daí que ele começa o conhecido interrogatório, que se estende para o perturbado médico Leslie Ferrier (Jamie Dornan), que está acompanhado do astuto e precoce filho, Leopold (Jude Hill); a dama de companhia de Rowena, Olga Seminoff (Camille Cottin); o ex-cunhado de Rowena, Maxime Gerard (Kyle Allen); e um inveterado policial chamado Vitale Portfoglio (Riccardo Scamarcio).
Dentre os filmes do “universo Christie” arquitetados por Branagh, ‘A Noite das Bruxas’ é, de fato, o mais ambicioso. Afinal, os dois capítulos anteriores se valeram da concretude e da palpabilidade dos crimes cometidos; aqui, todos os indícios colocam a fria e calculista lógica de Poirot em cheque, levando-o, várias vezes, a duvidar do que está acontecendo e da sua própria insanidade. Todavia, ele luta contra os próprios demônios anteriores – como a infeliz morte de sua noiva, Katherine – para colocar-se de volta nos eixos e resolver um mistério muito cabuloso. Não é surpresa, pois, que o diretor aposte fichas em toques do terror para construir uma atmosfera claustrofóbica e opressora, em que boa parte das sequências são confinadas aos estreitos e ecoantes corredores do Palazzo.
Dito isso, é notável o apreço de Branagh por escolas fílmicas clássicas, como o expressionismo, para engendrar essa ambientação: temos uma fotografia mais escura, marcada por tons em vermelho, preto e marrom, aliados a um constante uso de cores quentes para indicar um passado escondido do casarão – e que tem importância significativa para o arco de cada um dos personagens; a utilização de ângulos exagerados, em contraste com o método e a racionalidade de Poirot; o jogo de luz e sombra para brincar com o foreshadowing e as intenções ambíguas dos suspeitos; e uma bem-vinda teatralidade que puxa elementos do gótico e do drama para um competente esquema narrativo.
É claro que o filme não é livre de erros – e até mesmo parte do elenco cede a um roteiro corrido e a uma montagem fragmentada demais para nos envolver no que poderia ser uma obra quase impecável. A intenção do diretor e de sua equipe é misturar as angústias do terror psicológico com uma corrida contra o tempo que coleta mais e mais vítimas, mas a carência de preocupação em relação a esses aspectos nos diverge do objetivo principal mais de uma vez, por mais que tenha um sólido saldo positivo conforme os créditos finais aparecem nas telonas.
‘A Noite das Bruxas’ reitera a posição de Branagh como um grande conhecedor da sétima arte e, aqui, permite que ele busque alternativas artísticas a um gênero que, de certa maneira, vem saturando o mercado. Eventualmente, há falhas amadoras que poderiam ser lapidadas – mas isso não quer dizer que não possamos nos divertir com um novo capítulo de uma saga que ainda tem muito a contar.