segunda-feira, abril 15, 2024

Crítica | A Quietude – Quando o dramalhão mexicano encontra Freud

Dizem que de perto nenhuma família é muito normal ou perfeita, afinal, todas têm seus segredos escondidos por trás dos muros físicos e metafóricos que quem está de fora vê. Porém, por mais complicado que seja o círculo familiar de alguém, difícil superar tudo o que envolve as protagonistas do novo filme do argentino Pablo Trapero, A Quietude. As reviravoltas e descobertas que se desenrolam ao longo da trama fazem inveja ao mais intenso dramalhão mexicano; mas, diferente do que ocorre em histórias do tipo, toda a carga dramática vem acompanhada de personagens complexos, cheios de camadas – que, aqui, ainda servem como um prato cheio para os aficionados por Freud aplicarem seus conceitos.

A história se passa quase toda no rancho da família que tem o mesmo nome que intitula o longa, um irônico contraponto com toda a turbulência que se dá por trás dos muros que os cercam. Ela começa a se desenrolar quando, após o AVC do pai, a filha mais velha, Eugenia (Bérénice Bejo), volta de Paris para visitá-lo (mesmo sem parecer ter tanto apreço assim pelo seu progenitor) e passar um tempo com a mãe e a irmã. Nascida na França durante o tempo em que os pais ficaram fora da Argentina por conta da ditadura militar – tema que, inclusive, é abordado no filme em vários diálogos e em uma das principais reviravoltas do enredo – , a jovem acaba construindo sua vida no seu país de origem, para a infelicidade de sua irmã Mia (Martina Gusman), que sofre com sua ausência.

Já na primeira cena em que aparecem, fica bem claro como as duas são apegadas, e os olhos mais atentos já percebem uma tensão sexual que, a princípio, pode parecer equivocada. Até que a hipótese dessa suposta relação incestuosa ganha mais força em um dos momentos mais incômodos do longa e no final estrategicamente embaçado pelo diretor – que, para alguns, pode aparecer como uma resposta para a suspeita que permeia todo o enredo, ainda mais depois de descobrir como a família era, de fato, disfuncional. E vale dizer que a chance de análises psicológicas não para por aí: a péssima relação entre Mia e a mãe Esmeralda (Graciela Borges), enquanto o pai é visto como o “homem da sua vida”,  também entra na categoria “Freud explica”, assim como o modo como as duas irmãs parecem sentir prazer em compartilhar tudo – não só a tatuagem de golfinhos marcada no pulso de cada uma.

Não por acaso, as duas atrizes escolhidas para as personagens se parecem muito fisicamente – a ponto de, em algumas cenas, ficar difícil discernir quem é quem. A diferença mais gritante fica na personalidade: enquanto Mia é mais fechada e depressiva, Eugene se destaca por ser livre e provocante, do tipo de mulher que tem carisma e ambição para conseguir tudo o que quer; ainda que, no meio do caminho, acabe ferindo quem ama. Se não fossem tão cheias de camadas, e a história realmente seguisse o maniqueísmo dos dramalhões, Mia seria a mocinha enquanto Eugenia apareceria como a terrível vilã.

E somado a tudo isso, ainda falando na carga dramática digna de novela mexicana, estão traições, revelações inesperadas e diálogos intensos nos momentos mais inoportunos. Porém, além do fato da boa construção dos personagens, A Quietude também mostra mais charme que os típicos dramalhões por contar com elementos da mise-em-scène para transmitir seu recado – como o fato da luz acender e apagar o tempo todo sempre que a família aparece reunida na mesa de jantar.

Outro destaque são as boas atuações, principalmente as de Martina Gusman e Graciela Borges nas tantas cenas em que se desentendem. A dupla passa muita verdade durante todos os seus embates, até mesmo quando o teor da discussão parece ser um detalhe simples – como o ano em que um vídeo de infância foi gravado, por exemplo (o momento em que Mia e Esmeralda explodem com o “Foi em 97!”, “Não, foi em 96!” é um dos melhores do longa, e revela todo o clima pesado que envolve as duas).

Assim, ainda que tenha algumas reviravoltas e cenas de sexo desnecessárias, o saldo final de A Quietude é bem positivo. Ao longo dos 117 minutos, Trapero consegue fazer o que o cinema tem de melhor: tentar ir no mais profundo da mente humana, a ponto de tocar em tabus, e gerar incômodo. Ponto para a arte!

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