O ano é 1789, a população da França sente os fortes efeitos de uma grave crise causada pela intervenção de seu país na guerra da independência americana. Os desdobramentos dessa atuação elevaram desigualmente os impostos na nação europeia, e causou sérios impactos na qualidade de vida dos cidadãos. A fome e as péssimas condições nas cidades culminaram em dois dos eventos mais emblemáticos da primeira fase da revolução francesa: a tomada da Bastilha, e a posterior criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
E este é o ponto de partida para o longa do diretor Pierre Scholler “A Revolução em Paris”, ou “Un Peuple et son roi” (Um povo e seu rei). A produção milionária, que chega aos cinemas em novembro deste ano, traz um elenco de peso com nomes como: Gaspard Uliel (Hannibal – A Origem do Mal, Eterno Amor, Saint Laurent, dentre outros), Olivier Gourmet (que trabalhou em filmes como Chocolate, O Reencontro e Cyrano Mon Amour), Louis Garrel (de Os sonhadores, Saint Laurent e A Bela Junie), e a protagonista Adèle Haenel ( de 120 Batimentos por Minuto, L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância e A Garota Desconhecida). O elenco deu corpo à proposta de Scholler de maneira consistente, resultando em uma obra muito rica em beleza, em historicidade e em qualidade cinematográfica.
O título dado ao filme no Brasil não deixa de fazer jus a proposta, mas também não alcança a noção da relação entre as duas esferas envolvidas no processo revolucionário (sim, falando de forma bastante simplista). O longa é cuidadoso ao desenhar a relação entre o monarca em decadência e a população que ao longo do processo tem pelo rei um misto de adoração e revolta. Detalhes como o desejo de estar perto da figura de Luis XVI ou dos signos reais se contrapõe à momentos de chacota e de desejo por sua morte. Essa relação é apresentada de formas sutis, porém, claras ao longo de todo filme. Assim, o título original traça uma conexão mais íntima com o longa-metragem, além, é claro, de tirar dele esse ar de “filme de aula de história”.
O diretor premiado pelos filmes “O Exercício do Poder” e “Versailles” traz nessa embasada leitura sobre a primeira fase da revolução francesa um filme com uma estética requintada: por vezes parece ter saído de uma pintura. A fotografia do filme (Julien Hirsch), aliada ao figurino propuseram uma leitura de contrastes claros entre o universo da realeza e a rotina do povo parisiense. Especialmente ao apresentar o núcleo real, o filme traz às telas, aparentemente sem grande trabalho de pós-produção, figuras tão semelhantes aos quadros datados da época que, em certos momentos do longa-metragem usa (bem) essa semelhança dentro da narrativa em um diálogo ancestral. Entretanto, sobre o visagismo adotado, especialmente no núcleo da população, vale aquela velha crítica: a estética de pessoas belas e de dentes brancos não corresponde à realidade do século XVIII. Mas, com aquele passe da licença poética, fazemos uma certa vista grossa, não é mesmo? Especialmente porque fora essa opção, todo o restante do trabalho está impecável.
O roteiro, também assinado pelo diretor, opta por contar a história sob a ótica da população parisiense. Narrada pelo ponto de vista do povo, sem deixar de abordar as tensões no espaço da realeza. Uma revolução vinda do povo e, portanto, descrita do ponto de vista dele. É interessante perceber a forma como as consequências dos fatos foram impondo a todos os envolvidos (povo, rei, assembleia) a tomada de decisões nada simples. Observar a história contada a partir do povo traz a exata noção de que ao vivenciar um período histórico, se desconhece o seu desfecho, fazendo com que cada passo seja estratégico e incitando a urgência de ações coletivas e vigorosas.
O papel da mulher no processo da revolução é também tratado de forma coerente com os estudos históricos. Tratando da importância da marcha das mulheres e de seu papel aguerrido em todas as batalhas travadas – mesmo que com claras diferenças de direitos – o filme encoraja lutas ainda tão presentes no contexto social feminino nos dias de hoje. Não por menos o Festival Varilux de 2019 trouxe em sua arte principal a personagem de Adèle Haenel.
As cenas de batalha foram desenvolvidas de forma pouco glamourizada. A abordagem mais simples dos confrontos por um lado não gera emoção, mas novamente remete ao sentimento de vida real impresso em todo trabalho.
Outro aspecto que merece destaque é a mixagem de som (Jean-Pierre Laforce). Inicialmente os sons são aqueles que compõem a cena, sem aparentar edição sofisticada, o que dá um tom realista à narrativa. O caos das muitas vozes soando simultaneamente nos encontros de populares da antiga Paris não romantiza os encontros, trazendo ao público um sentimento de pertencimento. Tirando os espectadores do lugar de quem ouve uma história sendo contada, e fazendo-o sentir-se parte enquanto ela se desenrola. Essa proposta menos romantizada é eficiente em situar o público nas relações de parceria e convivência que se criam em um momento tão pertinente da revolução que é a tomada da Bastilha. E essa mesma condição pode ser observada em outros cortes da trama, sempre que trata de um grande aglomerado de personagens. Sejam eles cidadãos em processo de compreensão do próprio momento histórico (deliberando sobre as próximas investidas na luta pela igualdade de direitos), sejam parlamentares sofrendo e realizando pressões diversas. Vozes potentes, antagônicas. Os conflitos verbais foram retratados com emoções verdadeiras nas cenas que replicavam os espaços de discussão que culminaram na morte do Rei Luis XVI.
Uma outra abordagem, essa sim um tanto mais romântica, trabalhou com músicas clássicas e alguns momentos de silêncio. Apesar de ser uma abordagem comum a filmes históricos, não perdeu sua beleza na leitura dada pelo diretor. Por fim, o canto do povo também é bem trabalhado em cena, especialmente quando se trata do canto das mulheres em suas atividades de luta e também domésticas. A trilha sonora neste filme consegue ressaltar a beleza dos momentos descritos.
Esse é um filme que pode ser utilizado no material complementar de cursos que tratem do tema em seus respectivos conteúdos programáticos. Apesar de um pouco longo, é historicamente bem embasado, sem romantizar demais o sofrimento ou a luta por igualdade de direitos. Recomendado especialmente para adolescentes em formação e adultos amantes da história mundial.