Filme de encerramento do Festival de Veneza 2023, A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve), de J.A. Bayona, é uma emocionante narrativa de um dos maiores milagres — e tragédias — na história da América do Sul no século XX. Em 13 de outubro de 1972, o voo Força Aérea Uruguaia 571 decolou de Montevideo, com 45 passageiros, incluindo um time de rugby, mas nunca chegou ao seu destino.
Após 50 anos do desastre, o diretor espanhol Juan Antonio Bayona apresenta uma nova faceta para o ocorrido através da narração de Numa Tucartti (Enzo Vogrincic) e baseado no livro do jornalista uruguaio Pablo Vierci. Para esta nova adaptação, o cineasta trabalhou com atores da mesma origem dos personagens reais e as filmagens foram feitas nos locais do acidente na Cordilheira dos Andes.
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Diferente da mais conhecida adaptação para as telonas, Vivos (Alive, 1993), de Frank Marshall, com Ethan Hawke com um dos principais sobreviventes, A Sociedade da Neve é focado nos laços entre os sobreviventes da queda, os momentos limites de fé e as condições inimagináveis de resistência. Com uma produção muito mais caprichada e coerente com a origem dos envolvidos, o longa espanhol encobre as outras produções e consegue transmitir angústia e empatia sem cair no melodrama ou sensacionalismo.
A questão do sensacionalismo advém do método recorrido pelas vítimas para agarrar-se à vida: antropofagismo. Esta é, por exemplo, uma das memórias remanescentes do meu imaginário infanto-juvenil a assistir ao filme de 1993 pela primeira vez. Com uma ambientação por vezes inquietante, por vezes claustrofóbica, J.A. Bayona tem êxito em nos aglutinar àquela realidade e desespero sem recorrer a cenas explícitas, mas desenvolvendo muito bem as condições miseráveis daqueles indivíduos.
Conhecido internacionalmente pela adaptação da tragédia do Tsunami na Tailândia, no impactante O Impossível (2012), e lançado ao mundo com o assombroso O Orfanato (2007), J.A. Bayona tem uma sensibilidade em recriar dilemas morais e cenas de grande estupor. Criticado por pelo elenco caucasiano de O Impossível — Naomi Watts e Ewan McGregor — na época do lançamento, o diretor e roteirista [pela primeira vez em longas], buscou intérpretes latinos e a língua espanhola como pontos impreteríveis de sua obra.
Lançado pela Netflix, A Sociedade da Neve é um projeto cinematográfico de alta qualidade técnica e sonora. Após os primeiros minutos de ambientação política e emoção dos atletas em disputar uma partida no Chile, o filme nos projeta na aflitiva cena do impacto da aeronave nas montanhas dos Andes e os detalhes de cada objeto, cadeira e indivíduos durante aqueles incomensuráveis segundos. Ao mesmo tempo que arrepia, nos magnetiza a não desgrudar os olhos da tela.
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Por este e outros momentos chaves, A Sociedade da Neve é um filme de resiliência, fé e admiração. Todos os personagens são tratados com a mesma relevância e respeito, além dos bravos Roberto Canessa (Matías Recalt) e Nando Parrado (Agustín Pardella) que partem ao desconhecido com uma única missão: sobreviver. Mesmo para aqueles que já conhecem cada detalhe dos fatos, consegue se surpreender com a produção.
Duas das escolhas mais acertadas do roteiro foi ter dado voz a Numa como narrador do cotidiano e o registro escrito na tela do nome de cada passageiro perdido na trajetória dos 72 dias de espera e aflição. Em meio a tanta neve, avalanches e escassez de recursos, cada mínima decisão bem sucedida e barreira ultrapassada são como uma tocha de fogo a irradiar calor em nossos corpos estremecidos diante da tela.
Com distribuição da O2 Filmes, A Sociedade da Neve tem previsão de estreia para o dia 14 de dezembro de 2023 nos cinemas brasileiros. Em seguida, o filme chega à Netflix, em 4 de janeiro de 2024. O longa é o representante da Espanha para Oscar 2024.