Crítica livre de spoilers.
Em 2021, o Universo Cinemático Marvel foi oficialmente expandido para uma nova mídia com o lançamento da série ‘WandaVision’. Além de trazer uma exploração mais a fundo da icônica Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) e do Visão (Paul Bettany), a narrativa apresentou aos fãs uma das antagonistas mais carismáticas do panteão super-heroico: Agatha Harkness. A feiticeira, interpretada com perfeição por Kathryn Hahn (e que conquistou uma indicação ao Emmy por sua rendição), caiu no gosto do público e da crítica e, por essa razão, ganhou uma atração própria intitulada ‘Agatha Desde Sempre’.
A produção chegou ao catálogo do Disney+ em setembro deste ano e, no último dia 30 de outubro, encontrou sua conclusão com a exibição dos dois capítulos finais. E, desde a primeira semana, é notável como a obra ascendeu a um nível de qualidade invejável que a sagrou como uma das melhores incursões seriadas do MCU, seja pelo comprometimento com que desenvolveu as personagens protagonistas, seja pela estética teatral e fabulesca que pincela cada um dos episódios. Como se não bastasse, é notável como a produção busca se afastar dos convencionalismos das narrativas de super-herói para arquitetar uma trama única e com incursões emocionantes e funcionais (por mais que a originalidade dê espaço a uma nostalgia inebriante).
Para aqueles que não acompanharam, a trama é centrada em Agatha, que permanece presa em um poderoso feitiço lançado por Wanda como punição por tê-la enfrentado. Após cruzar caminho com um adolescente desconhecido apelidado de Jovem (Joe Locke), ela se vê livre dessa prisão mental e parte em busca de formar um clã de feiticeiras, embarcar numa perigosa missão pelo Caminho das Bruxas e recuperar o poder que lhe foi usurpado. E isso não é tudo: Agatha também está fugindo de um mortal grupo conhecido como as Sete de Salém, que quer sua morte após os crimes cometidos em um passado remoto, e é obrigada a lidar com fantasmas do passado que insistem em assombrá-la.
Acompanhando-a estão o Jovem, Rio Vidal (Aubrey Plaza), Jen Kale (Sasheer Zamata), Alice Wu-Gulliver (Ali Ahn), Lilia Calderu (Patti LuPone) e a humana Sharon Davis (Debra Jo Rupp reprisando seu papel de ‘WandaVision’). Juntos, eles partem uma aventura cujo principal objetivo é conquistar o que acreditam merecer – porém, os membros desse nada ortodoxo clã deverá sobreviver a desafios extremamente arriscados e que colocarão suas habilidades em jogo.
No geral, a showrunner e criadora Jac Schaeffer adota uma tarefa difícil e alcança o que deseja com sucesso quase impecável. Schaeffer ergue uma trama que presta homenagem a diversas produções de fantasia que vieram antes, mas sem perder a identidade Marvel que é familiar aos fãs. Todavia, o que se desenrola à nossa frente é uma homenagem a títulos como ‘Abracadabra’, ‘Encantada’, ‘O Mágico de Oz’ e tantos outros (direta ou indiretamente), em uma teatral roupagem que sabe de que forma quer se posar sem esbarrar em caprichos cansativos e sem sentidos. Cada engrenagem é pensada com maestria, por mais que precise de certa lubrificação aqui e ali, exagerando nos momentos certos e permitindo que os membros da equipe criativa e técnica se divirta em pequenas porções audiovisuais que enchem os olhos do público.
O elenco faz um trabalho primoroso ao delinear as personalidades de formas diferentes e instigantes – com destaque a Hahn em um dos melhores papéis de sua carreira (e fornecendo um lado de Agatha de que não tínhamos ciências), Locke em sua entrega total ao papel do Jovem, e Plaza em uma derradeira e descompensada apresentação de Rio (e centro de uma reviravolta esperada, mas desenvolvida de maneira aprazível). Porém, LuPone, carregando uma experiência magnífica na indústria do entretenimento, rouba os holofotes em todas as sequências em que aparece – e brilha em auge glorioso quando Schaeffer resolve dedicar um episódio inteiro para explorar suas origens e seu arco.
Um outro elemento que nos chama a atenção é a preocupação imagética da série – apostando fichas em uma cenografia burlesca e mística, aproveitando o legado deixado pelo expressionismo alemão para calcar cenários retorcidos, movidos pelo uso constante de luz, sombra e névoa, em contraste com modernizações propositais que parecem colocar o enredo em uma cronologia propositalmente suspensa. A trilha sonora, assinada por Christophe Beck e Michael Paraskevas, é tétrica, enervante e condizente com os acontecimentos de cada episódio. Até mesmo os enquadramentos, alicerçados em um foreshadowing divertido e que dialoga com os arcos dos protagonistas e coadjuvantes, são interessantes mesmo dentro da estrutura quase imutável da Marvel Studios.
‘Agatha Desde Sempre’ é um enorme acerto do MCU e posa como a melhor série live-action desse expansivo panteão desde ‘WandaVision’. Para além de performances memoráveis e um compromisso com a qualidade, é perceptível como Schaeffer manejou trazer as produções de quadrinhos ao nível de que sentíamos falta – e que abre espaço para um novo capítulo de um cosmos nada menos que marcante na cultura pop.