domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | Alicia Keys celebra a cultura afroamericana com o impecável ‘HERE’

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Quando achávamos que Alicia Keys não poderia mais nos surpreender com composições originais e rearranjos de sua própria carreira, ela nos prova errado – e é basicamente essa sensação estupenda que fica com HERE, seu sexto e penúltimo álbum de estúdio (até o momento). Demorando nada menos que quatro anos para lançá-lo, a artista comentou em entrevistas promocionais que nunca havia criado músicas de uma forma tão rápida. Talvez o motivo de tamanho fluxo criativo tenha insurgido com os crescentes movimentos em defesa das vidas negras nos Estados Unidos e da luta para celebrar a importância da cultura africana. E, enquanto ela nunca experimentou algo assim, o público também não – o que explica nosso imediato envolvimento com uma jornada majestosa traduzida em dezoito faixas.

HERE inicia de uma forma familiar: Keys abre essa sinestésica aventura com um interlúdio intitulado “The Beginning”, que coloca o piano em segundo plano pela primeira vez em prol de uma declamação evocativa sobre a história, durante a qual une presente, passado e futuro, fazendo homenagens a uma “Nina Simone no parque, no Harlem, no escuro” e celebrando sua própria persona. A profunda atmosfera é uma reminiscência de seus primeiros anos na indústria, mas é pincelada com uma profundidade desencantada com o mundo e que guiaria todas as outras faixas – como a consecutiva e explosiva “The Gospel”. Aqui, a influência do R&B dá espaço para uma mistura entre rap e soul, arquitetados com a verborragia analítica de uma das muitas personagens que saíram de bairros afro-americanos (como o Bronx e o Brooklyn, por exemplo) e que compartilham de narrativas bastante similares.



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A expressão da contracultura poética é arquitetada em contraponto aos clássicos orquestrais, o que explica a necessidade de uma track como essa em um período tão complexo quanto o que Alicia vivia. Através de uma pungente lírica (sua melhor até então), suas críticas à meritocracia e ao supremacismo racial são claras e bem-vindas. Tais incursões se mantém em “Pawn It All”, um dos ápices do álbum, em que a temática de reconquistar uma vida perdida é conduzida por um pop-folk e R&B que condecora, acidental ou propositalmente, as cantigas laborais inglesas do século XVII – abrindo espaço para as populares transgressões do gospel. Os resgates cinquentistas também aparecem com força, como na poderosa “Kill Your Mama”, mas não restringem o construtivo anacronismo que toma forma no synth-soul de “She Don’t Really Care_1Luv” ou na contemporaneidade de “Work On It”.

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Por mais único que o estilo da cantora e compositora seja, considerando principalmente as power ballads em R&B com que nos presenteara anos atrás, ela não tem medo de ousar em consagrar todos os ídolos que já passaram por sua vida – da mesma forma que sempre fizera. A comercial parceria com A$AP Rocky, “Blended Family (What You Do For Love)”, é nada menos que uma breve e mais comedida mesura às vibrantes inflexões dos grupos En Vogue e Salt-N-Pepa – algo que já era de se esperar, considerando o respaldo militante e feminista da lead singer -, com todas as glórias dos anos 1990. As aparições póstumas de James Brown comandam os potentes vocais de “Illusion of Bliss”, cujo título fala acerca de uma pseudo-felicidade que mascara os reais problemas da sociedade. Em “Where Do We Begin Now”, as apaixonantes dissonâncias retomam a artística produção dos anos 1920 do jazz, fazendo alusão ao lendário George Gershwin e a suas rapsódias.

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Diferente das breves obviedades de suas obras anteriores, Keys também desconstrói uma engessada estética para trabalhar na diegese e na extradiegese de seu trabalho. A metalinguagem fonográfica é um dos principais artifícios utilizados pela artista, transpondo-a para além dos microcosmos de cada faixa e calcando uma espécie de musical dramático – exemplificado pela fusão entre trilha sonora e diálogos cotidianos sobre os mais variados assuntos que discorre ao lado de seus colegas. De qualquer forma, ela não abandona o que outrora lhe colocou no topo do mundo, como os roucos e crus vocais de “Hallelujah”, que, apesar de perder pontos pela formulaica progressão, vale a pena pela teatral rendição.

O CD não rendeu muitos singles promocionais – e a explicação é extremamente plausível. Alicia não desejava engendrar uma mera diligência mercadológica, e sim investir em uma tese sociológica sobre os problemas e as dificuldades enfrentadas pelos negros desde a época da escravidão até a atualidade, incluindo preconceito, falta de oportunidades e apagamento de cultura. Mais do que isso, ela fala sobre as múltiplas ramificações dos afrodescendentes de forma conspícua e celebratória, numa urgência que marcaria produções futuras de nomes como Beyoncé, Megan Thee Stallion e Cardi B.

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De Elaine Brown a Shirley Chisholm, HERE é um grande aparato histórico e a magnum opus de Alicia Keys. Ela reconhece sua presença na sociedade contemporânea e, como cita categoricamente logo na primeira canção, se enxerga como a “dramática estética antes da música começar”.

Nota por faixa:

  1. The Beginning (Interlude) – 5/5
  2. The Gospel – 5/5
  3. Pawn It All – 5/5
  4. Elaine Brown (Interlude) – 5/5
  5. Kill Your Mama – 4,5/5
  6. She Don’t Really Care_1Luv – 4,5/5
  7. Elevate (Interlude) – 4/5
  8. Illusion of Bliss – 5/5
  9. Blended Family (What You Do For Love) (feat. A$AP Rocky) – 4,5/5
  10. Work On It – 5/5
  11. Cocoa Butter (Cross & Pic Interlude) – 5/5
  12. Girl Can’t Be Herself – 4,5/5
  13. You Glow (Interlude) – 5/5
  14. More Than We Know – 4,5/5
  15. Where Do We Begin Now – 5/5
  16. Holy War – 5/5
  17. Hallelujah – 3,5/5
  18. In Common – 5/5
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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Quando achávamos que Alicia Keys não poderia mais nos surpreender com composições originais e rearranjos de sua própria carreira, ela nos prova errado – e é basicamente essa sensação estupenda que fica com HERE, seu sexto e penúltimo álbum de estúdio (até o momento). Demorando nada menos que quatro anos para lançá-lo, a artista comentou em entrevistas promocionais que nunca havia criado músicas de uma forma tão rápida. Talvez o motivo de tamanho fluxo criativo tenha insurgido com os crescentes movimentos em defesa das vidas negras nos Estados Unidos e da luta para celebrar a importância da cultura africana. E, enquanto ela nunca experimentou algo assim, o público também não – o que explica nosso imediato envolvimento com uma jornada majestosa traduzida em dezoito faixas.

HERE inicia de uma forma familiar: Keys abre essa sinestésica aventura com um interlúdio intitulado “The Beginning”, que coloca o piano em segundo plano pela primeira vez em prol de uma declamação evocativa sobre a história, durante a qual une presente, passado e futuro, fazendo homenagens a uma “Nina Simone no parque, no Harlem, no escuro” e celebrando sua própria persona. A profunda atmosfera é uma reminiscência de seus primeiros anos na indústria, mas é pincelada com uma profundidade desencantada com o mundo e que guiaria todas as outras faixas – como a consecutiva e explosiva “The Gospel”. Aqui, a influência do R&B dá espaço para uma mistura entre rap e soul, arquitetados com a verborragia analítica de uma das muitas personagens que saíram de bairros afro-americanos (como o Bronx e o Brooklyn, por exemplo) e que compartilham de narrativas bastante similares.

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A expressão da contracultura poética é arquitetada em contraponto aos clássicos orquestrais, o que explica a necessidade de uma track como essa em um período tão complexo quanto o que Alicia vivia. Através de uma pungente lírica (sua melhor até então), suas críticas à meritocracia e ao supremacismo racial são claras e bem-vindas. Tais incursões se mantém em “Pawn It All”, um dos ápices do álbum, em que a temática de reconquistar uma vida perdida é conduzida por um pop-folk e R&B que condecora, acidental ou propositalmente, as cantigas laborais inglesas do século XVII – abrindo espaço para as populares transgressões do gospel. Os resgates cinquentistas também aparecem com força, como na poderosa “Kill Your Mama”, mas não restringem o construtivo anacronismo que toma forma no synth-soul de “She Don’t Really Care_1Luv” ou na contemporaneidade de “Work On It”.

Por mais único que o estilo da cantora e compositora seja, considerando principalmente as power ballads em R&B com que nos presenteara anos atrás, ela não tem medo de ousar em consagrar todos os ídolos que já passaram por sua vida – da mesma forma que sempre fizera. A comercial parceria com A$AP Rocky, “Blended Family (What You Do For Love)”, é nada menos que uma breve e mais comedida mesura às vibrantes inflexões dos grupos En Vogue e Salt-N-Pepa – algo que já era de se esperar, considerando o respaldo militante e feminista da lead singer -, com todas as glórias dos anos 1990. As aparições póstumas de James Brown comandam os potentes vocais de “Illusion of Bliss”, cujo título fala acerca de uma pseudo-felicidade que mascara os reais problemas da sociedade. Em “Where Do We Begin Now”, as apaixonantes dissonâncias retomam a artística produção dos anos 1920 do jazz, fazendo alusão ao lendário George Gershwin e a suas rapsódias.

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Diferente das breves obviedades de suas obras anteriores, Keys também desconstrói uma engessada estética para trabalhar na diegese e na extradiegese de seu trabalho. A metalinguagem fonográfica é um dos principais artifícios utilizados pela artista, transpondo-a para além dos microcosmos de cada faixa e calcando uma espécie de musical dramático – exemplificado pela fusão entre trilha sonora e diálogos cotidianos sobre os mais variados assuntos que discorre ao lado de seus colegas. De qualquer forma, ela não abandona o que outrora lhe colocou no topo do mundo, como os roucos e crus vocais de “Hallelujah”, que, apesar de perder pontos pela formulaica progressão, vale a pena pela teatral rendição.

O CD não rendeu muitos singles promocionais – e a explicação é extremamente plausível. Alicia não desejava engendrar uma mera diligência mercadológica, e sim investir em uma tese sociológica sobre os problemas e as dificuldades enfrentadas pelos negros desde a época da escravidão até a atualidade, incluindo preconceito, falta de oportunidades e apagamento de cultura. Mais do que isso, ela fala sobre as múltiplas ramificações dos afrodescendentes de forma conspícua e celebratória, numa urgência que marcaria produções futuras de nomes como Beyoncé, Megan Thee Stallion e Cardi B.

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De Elaine Brown a Shirley Chisholm, HERE é um grande aparato histórico e a magnum opus de Alicia Keys. Ela reconhece sua presença na sociedade contemporânea e, como cita categoricamente logo na primeira canção, se enxerga como a “dramática estética antes da música começar”.

Nota por faixa:

  1. The Beginning (Interlude) – 5/5
  2. The Gospel – 5/5
  3. Pawn It All – 5/5
  4. Elaine Brown (Interlude) – 5/5
  5. Kill Your Mama – 4,5/5
  6. She Don’t Really Care_1Luv – 4,5/5
  7. Elevate (Interlude) – 4/5
  8. Illusion of Bliss – 5/5
  9. Blended Family (What You Do For Love) (feat. A$AP Rocky) – 4,5/5
  10. Work On It – 5/5
  11. Cocoa Butter (Cross & Pic Interlude) – 5/5
  12. Girl Can’t Be Herself – 4,5/5
  13. You Glow (Interlude) – 5/5
  14. More Than We Know – 4,5/5
  15. Where Do We Begin Now – 5/5
  16. Holy War – 5/5
  17. Hallelujah – 3,5/5
  18. In Common – 5/5
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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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