Desde as manifestações de 2013, a política brasileira tornou-se tema de incontáveis projetos de documentários e ficções. Pelas mãos de Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?) e Lô Politi (Jonas), Alvorada acompanha o dia a dia da presidente Dilma Rousseff, entre julho e setembro de 2016, no decorrer da abertura até a votação do seu processo de impeachment. Lançado no 26º Festival É Tudo Verdade, o documentário observa a agenda e as elucubrações da chefe de estado em um dos momentos mais marcantes da recente história do nosso país.
Diferente das obras Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos, e Excelentíssimos (2018), de Douglas Duarte, a abordagem de Muylaert e Politi é mais intimista e despojada. Como se elas estivessem a observar a “casa” da presidente, seus visitantes, e, por vezes, sentam-se à mesa para ouvir a anfitriã contar suas percepções e entreter os convidados com análises filosóficas e políticas. Uma delas é uma bonita e certeira analogia entre a expressão “a banalidade do mal”, cunhada por Hannah Arendt (1906-1975), a Eduardo Cunha, então presidente da Câmara de Deputados.
Os acontecimentos são desenvolvidos no mesmo período dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a televisão pelos cômodos da casa testemunha o momento, enquanto a voz de Dilma enuncia apenas um lamento de não poder participar de uma cerimônia do evento, já que estava afastada do seu mandato. A pressão do período é estabelecida nos encontros da presidente com a imprensa, seja nacional seja internacional. Suas respostas são ponderadas e passivas, no entanto, os jornalistas buscam uma “confissão” ou uma explicação lógica para o desenrolar do processo no congresso.
Quando Dilma Rousseff não está em destaque, os cômodos do Palácio da Alvorada ganham status de personagens, não apenas cenário. Entre suas paredes, funcionários do governo circulam e cumprem suas funções, desde o preparo do menu do dia, passando pela vigilância de emas e patos, até a preparação de um discurso. Em cena, grande parte das discussões ficam em torno da elaboração de uma carta aos apoiadores, ministros e até mesmo aos “inimigos” do governo.
Sem deixar a peteca cair, Dilma mostra-se ostensiva na sua defesa e consciente do jogo político. A emblemática foto de sua auditoria no tribunal militar em 1970 recebe um enquadramento preciso, enquanto funcionários e assessores acompanham a votação do impeachment. Se outros documentários mostram o circo do processo no congresso, Alvorada estabelece um paralelo entre a tranquilidade da acusada e sua indefensável imputação: não fazer parte de um grande acordo político.
A visita de um grupo de mulheres afro-descendentes exemplifica o acesso a diálogos inéditos da presidência com a sociedade civil, assim como as divagações de Dilma sobre a construção ficcional do “grande mal” invocam uma figura política interessante. A grande questão do documentário é se Dilma Rousseff encarnou um personagem para passar firme pelo processo de impeachment ou se o semblante inabalável diante da deslegitimação do seu mandato era autêntico. Ao mesmo tempo que, ao acompanhar os passos da ocupante do Alvorada, as diretoras talvez não quisessem respostas, mas memórias.
Após a votação de 31 de agosto de 2016, a imagem de guerreira permanece ao ser recebida ao som de “Olê, olê, olá, Dilma, Dilma” na porta do palácio. Contudo, aos poucos, os móveis e objetos pessoais vão sendo removidos do local e endereçados ao Rio Grande do Sul. Dilma volta à cena em montagens da única conversa direta com as diretoras, nas quais cita José Saramago, Guimarães Rosa e o poema Paraíso Perdido, do britânico John Milton, no século XVII. Ela guarda a amargura, a revolta e a estupefação em digressões sobre a figura do diabo, o qual, para ela, é “uma criação intrigante”.
Com a câmera como testemunha e, poucas vezes, no papel de inquisidora, Anna Muylaert e Lô Politi retratam um período da história política brasileira do ponto de vista de uma infraestrutura sem voz. A personagem principal sai de cena e deixa uma cadeira vazia, o enquadramento final do documentário é exatamente essa provocativa constatação de efemeridade. Junto à cadeira, o quadro de Di Cavalcanti na parede do salão presidencial permanece até o último segundo de tela, e Alvorada testemunha a expiração de seus ocupantes.