Parte do que transforma uma obra em um clássico é seus personagens carismáticos, que tocam o coração dos leitores e espectadores. Quando a obra é audiovisual, recai aos atores construir esse carisma que irá conectar os espectadores com a história. Se o trabalho é bem-feito, o tempo pode até passar, mas a conexão criada permanece, de modo que toda vez que tais atores se reúnem por qualquer razão (num outro trabalho, numa premiação, numa festa), imediatamente os fãs fazem a conexão com o vínculo criado naquela obra-referência. Foi o que o diretor Robert Zemeckis conseguiu, ao reunir o elenco de ‘Forrest Gump’ em seu mais novo lançamento, ‘Aqui’ (Here), que chega essa semana aos cinemas brasileiros.
Em ‘Aqui’, acompanhamos duas histórias em paralelo. Uma primeira, numa camada mais superficial, mostra em primeiro plano a história de uma casa (isso mesmo!), em uma ousada e original movimentação do diretor Robert Zemeckis – que colocou uma câmera fixa em um único cômodo (a sala) e filmou todos os 100 minutos de longa nesta mesma posição, pouco se mexendo (e, quando se mexeu, foi para centímetros para o lado). Deste ponto de vista, acompanhamos os diversos moradores dessa casa, desde sua construção até os tempos contemporâneos.
O que interessa mesmo é o segundo plano, que é a história profunda de ‘Aqui’ – e que para a maioria das pessoas vai passar como um pano de fundo. É a história contada pela janela, pela direção de arte, figurino e penteado: a história da formação da sociedade estadunidense. Através dos detalhes e do panorama, atravessamos cerca de dois séculos de formação social daquele país, desde os povos originários, à guerra civil, a modernização e eletrificação das ruas e, internamente, as modificações que vão ocorrendo internamente, no âmbito da “tradicional família americana”. Assim, enquanto vemos a casa ser vendida, hipotecada, herdada e repassada a novos donos, também vamos acompanhando, num contexto mais amplo, as crises financeiras enfrentadas pelo país (por exemplo, por conta das guerras em que se meteu) bem como também dos exponenciais de produção, estimulados pela edificação de uma sociedade do consumo que é estimulada a comprar, mesmo sem condições de pagar.
Tudo isso é visto com empatia por um roteiro de Eric Roth, Richard McGuire (autor da HQ na qual o filme se baseia) e do próprio Robert Zemeckis, que tece uma história principal que envolve (e envolverá) os carismáticos personagens Richard (Tom Hanks) e Margaret (Robin Wright) desde seu nascimento até a velhice, atravessando os muitos desafios que uma família atravessa. Tendo já vivido um casal em ‘Forrest Gump’, os dois voltam a emprestar solidez ao relacionamento conjugal através das situações cotidianas com as quais o espectador facilmente se relaciona. Há de se observar, inclusive, o uso de inteligência artificial para as performances de ambos os atores – em vez de ser elencado atores mais jovens para o período da juventude, a produção abertamente utilizou a IA para os corpos de Hanks e Wright.
Com muitas histórias subliminares e uma câmera inventiva, é de se esperar que, portanto, o ritmo do longa seja mais devagar – e de fato o é, porque ‘Aqui’ é um filme para ser apreciado nos detalhes, e não devorado como um blockbuster. Emocionante e com uma belíssima produção de arte, ‘Aqui’ é um filme para ser sentido, especialmente em seu discurso final. Daqueles filmes que tem cara (e elenco) de Oscar, uma joiazinha que chega timidamente ao circuito.