No mundo esportivo, há casos de atletas que são tão fenomenais que suas contribuições para as modalidades fazem com que eles transcendam o próprio esporte e se imortalizem no imaginário popular como verdadeiros ícones, lendas. Pelé, Jesse Owens, Usain Bolt, Muhamammad Ali, Ayrton Senna, Serena Williams… Todos esses nomes marcaram gerações e serão citados eternamente pelo que representaram e representarão para o povo, motivado pelos resultados que o esforço e a dedicação de seus ídolos trouxeram para o mundo.
Lançada em abril de 2020, a série Arremesso Final, uma parceria entre a Netflix e a ESPN Films, consegue retratar, com uma profundidade poucas vezes vista no mundo de documentários esportivo, a fase vitoriosa do Chicago Bulls nos anos 90, quando o time enfileirou seis títulos em oito anos, tendo como guia da trama o maior de todos os tempos: Michael Jordan.
Ao longo de dez episódios, a série/documentário mergulha de cabeça nos bastidores dos Bulls e como aspectos pessoais do elenco influenciaram nos jogos decisivos das temporadas. Mas o que diferencia essa produção das demais é que ela não se restringe a mostrar como as ações externas afetavam os jogadores. Ela vai além ao trazer episódios que trabalham a importância do elenco hexacampeão da NBA, junto à jornada pessoal de Michael Jordan em seu processo de consolidação de entidade do basquete mundial, ao moldar a cultura americana em uma época em que não havia redes sociais, e o acesso à informação era mais limitado que hoje.
O quinto episódio, por exemplo, é todo dedicado ao fenômeno cultural que foi Michael Jordan, tratando do ídolo por uma ótica sociológica e econômica. E é nesses momentos que Jordan se sobressai. Ao falar de seu contrato com a Nike, que rendeu a mega bem-sucedida linha Air Jordan, ele comenta sem papas na língua que preferia a Adidas e que só aceitou sentar para ouvir a proposta da marca após levar uma grande chamada da mãe, fato esse que é confirmado pela própria Senhora Jordan em uma das entrevistas. A relação de amor do diretor Spike Lee com o esporte e sua amizade com Jordan também dão as caras nesse episódio, reafirmando a importância do basquete, de Michael Jordan e dos tênis na Cultura Black americana.
Em nível esportivo, Arremesso Final brinda os fãs de basquete com momentos que ficarão marcados na memória por muito tempo, como a entrevista em que o excêntrico Dennis Rodman explica com detalhes como era sua visão de jogo, como cada movimento adversário influenciava no raciocínio defensivo dele e como ele pensava a próxima jogada como se fosse um reflexo. As polêmicas de Scottie Pippen também são abordadas e justificadas – ou não – pelo próprio jogador, assim como diversos lances controversos dos adversários também são comentados pelos atletas envolvidos. Um dos momentos mais emocionantes da série é quando os entrevistadores conseguem que Steve Kerr comente sobre a relação com o pai. E o mais legal disso tudo é que Michael Jordan participou direta ou indiretamente de quase todos esses lances, e a produção o coloca para “reagir às reações”, revelando muito do emocional do craque, que se diverte, faz cara feia e, às vezes, até mesmo demonstra mágoa.
Isso sem contar que cada episódio traz verdadeiras aulas de como montar narrativas de forma não linear, conseguindo manter o público preso, entretido e ansioso para saber qual fato será retratado a seguir e qual história paralela será contada de forma a complementar lances históricos dos Bulls. É realmente fascinante o trabalho de pesquisa feito pela equipe, não apenas com as imagens de arquivo da ESPN – que registrou em altíssimo nível imagens dos anos 90 que parecem ter sido feitas em um jogo de 2019, por exemplo -, mas também pela qualidade das entrevistas, ainda mais se tratando de um jogador tão reservado quanto Michael Jordan e personalidades de altíssimo nível, como Jerry Reinsdorf, Phil Jackson, Barack Obama, Justin Timberlake e diversas lendas do basquete. E é interessantíssimo notar como a narrativa da série parece acompanhar o ritmo de crescimento do próprio Chicago Bulls. Assim como o elenco, a série começa se apoiando bastante em Michael Jordan. No entanto, conforme ela vai avançando, os companheiros de time e o coletivo ganham mais destaque – mesmo ainda tendo Michael como protagonista -, culminando em um episódio final passando por todos os membros envolvidos nessa era vitoriosa.
Fora todos esses méritos, junto a uma direção e trilha sonora fantásticas, o grande trunfo de Arremesso Final é fazer um trabalho magistral de desconstrução e humanização do ícone Michael Jordan. Diferentemente de outras obras biográficas que tentam esconder personalidade difícil e polêmicas na carreira, a série traz o eterno Camisa 23 como uma máquina sedenta por vitória, capaz de derrubar qualquer um que se meta em seu caminho, inclusive seus companheiros de equipe, o que demonstra uma personalidade obstinada, mas ridiculamente difícil de conviver. Eles também trabalham a repercussão negativa que as jogatinas de Michael causaram em sua carreira, como a perda brutal e repentina do pai o levou a tomar novos rumos e novas motivações na mentalidade vencedora, o sentimento constante de não apenas querer vencer, mas humilhar os adversários enquanto vence. E ainda assim, mostrando como ele era um babaca nos treinos, a série consegue pegar esses aspectos controversos, humanos, e deixá-lo ainda maior.
Durante a quarentena, Arremesso Final conseguiu trazer aquele gostinho, aquela ansiedade, aquele amor, aquele fascínio que somente o esporte consegue despertar nos seres humanos. Ainda mais em um ano que começou com a trágica morte de Kobe Bryant, ter acesso a uma produção histórica como essa é um presente não apenas para o fã do esporte, mas para todos aqueles que são apaixonados por boas histórias e sonham com alguma coisa na vida. Arremesso Final é, sem dúvidas, o maior acerto da Netflix em 2020.