Uma das características mais conhecidas do Rio de Janeiro é a violência. Os mais velhos costumam dizer que “antigamente não era assim”. E não era mesmo. Inúmeros fatores influem na forma como o Rio de Janeiro foi se configurando no que é hoje, especialmente as zonas periféricas (comunidades, favelas, baixada fluminense), que vão sendo empurradas cada vez mais para longe dos olhos (e dos investimentos dados ao) do asfalto carioca. Isso não é de hoje, de ontem: isso vem lá do Brasil império.
Mas fato é que as favelas cariocas existem, fazem parte da cidade e da paisagem, têm suas próprias histórias e suas vozes precisam ser ouvidas. Uma dessas vozes pode ser ouvida em ‘Bandida: A Número Um’, filme que estreou em 2º lugar entre os títulos mais vistos da Netflix.
Rebeca (Maria Bomani, ex-BBB 22) foi criada pela Rocinha. Abandonada pelos pais e vendida pela avó a Amoroso (Milhem Cortaz, de ‘Os Outros’), chefe do tráfico no morro, Rebeca desde cedo aprendeu a lutar para sobreviver. Mas quando chegou na juventude, conheceu Pará (Jean Amorim, de ‘Malhação’), sobrinho do chefe, e rapidamente o amor entre eles cresceu, embora Amoroso desaprovasse. Nesse mesmo período a cocaína começou entrar no morro, vendida pela turma de Del Rey (o cantor Otto, irreconhecível) e Gil (Mc Marechal), desbancando a gerência mais tranquila de Amoroso e implementando os bailes funks regados a música alta e tiros pro alto. No meio da disputa para ver quem manda na Rocinha, Rebeca vai gravando sua história em fitas K-7, enquanto se torna a Número Um da favela.
Inspirado no livro homônimo de Raquel de Oliveira, ‘Bandida: A Número Um’ é narrado pela protagonista e dividido em cinco partes, sendo a última aquela que supostamente contaria a vida da protagonista como a número um, a chefe da Rocinha. Entretanto, com apenas uma hora e vinte de duração, é justamente esta última parte que fica faltando no filme, dando a entender que tudo neste bloco teria ocorrido rápido demais.
Apesar dessa escolha curiosa, o filme de João Wainer (do documentário inédito ‘Doleira: A História de Nelma Kodama) é bastante imersivo, quase como num videogame. As cenas de perseguição e de corre-corre pelas ruas da favela são intensas o suficiente para fazer o espectador mergulhar nelas. Para o público de filmes de ação, é exatamente isso que buscam num filme, e neste quesito ‘Bandida: A Número Um’ acerta em cheio. O diretor ainda aumenta a atmosfera nostálgica construindo um reinado de Amoroso muito mais solar e colorido, enquanto o de Del Rey é mais escuro e sombrio. Para as cenas de narração da personagem, o diretor opta por planos em close-up em Maria e filmagem em preto e branco, enquanto nas cenas de reconstrução da memória o diretor opta por lentes mais quadradas, que desfocam propositalmente, e uso de gelatina laranja para reforçar o ar de um tempo passado.
‘Bandida: A Número Um’ é uma superprodução que conta com um elenco enorme e dedicado, com nomes como JP Rufino, Natália Lage e João Vitor Nascimento destilando diálogos reais do povo. O roteiro também foca em contar a transição do controle do tráfico da Rocinha com o que era antes, controlado por bicheiros, para o que se transformou depois, muito mais violento. Um panorama interessante, para lembrar que já houve outros tempos.
Embebido em Shakespeare, ‘Bandida: A Número Um’ traz a história de um amor bandido, com a gangue de Romeu enfrentando a família de Julieta em plena Rocinha, contada pelas vozes das crias do morro trazendo seus pontos de vista para além das manchetes de jornal.