quarta-feira , 18 dezembro , 2024

Crítica | Björk celebra a vida e a morte na estupenda obra-prima ‘Fossora’

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Björk é uma das artistas mais únicas da história da música e, ao longo de sua extensa e prolífica carreira, remodelou as inflexões artísticas fonográficas a seu bel-prazer. A artista islandesa sempre trouxe algo de novo para cada um de seus álbuns, afastando-se dos convencionalismos que dominavam épocas determinadas para apostar fichas em um vanguardismo excêntrico e propositalmente excessivo, tornando o trabalho de colocá-la em uma caixinha ou restringi-la a um rótulo impossível. Agora, cinco anos depois do lançamento de ‘Utopia’, ela retorna com um ambicioso e terapêutico compilado de originais intitulado Fossora – cujas concepção e entrega transforma a produção em uma das melhores de sua discografia.

Analisar o trabalho de Björk não é uma tarefa fácil, ainda mais pelo fato de ela não seguir quaisquer estéticas engessadas pelo mainstream ou até mesmo pelo cenário alternativo – que vem se mostrando cada vez mais cheio de emulações e homenagens. É claro que a cantora e compositora não deixa de trazer elementos familiares para essa nova produção, mas prefere arquitetar uma linha de pensamento que dialogue com suas próprias incursões predecessora, como se pudesse encontrar o que precisa dentro de território conhecido. E o resultado é, sem surpresa alguma, diferente de qualquer coisa que já ouvimos neste ano – e digo isso como um elogio, principalmente considerando o processo de construção do disco e as importantes temáticas trazidas pelas canções.



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A artista escolheu “Atopos” como a faixa de abertura dessa inesperada jornada e como lead single – e a própria nomenclatura da música já indica o que podemos esperar do álbum. Se você nunca ao menos cruzou caminho com uma canção composta por Björk, digo que nenhuma das escolhas é por acaso e que cada engrenagem pertence a uma macroestrutura que rompe com as barreiras sonoras e expande-se para teoremas filosóficos e análises sociológicas sobre o homem em si e dentro da sociedade. É a partir daí (e resgatando o conceito de atopia e da efemeridade das sensações de Roland Barthes) que a primeira track insurge, como um arauto do nada e do não-lugar: “estas não são apenas desculpas para se conectar?”, ela pergunta a um interlocutor invisível, destacando a fugacidade de um relacionamento cujos problemas não importam.

De certa maneira, é possível enxergar a visão de Björk como um enfrentamento pessimista da realidade – mas seria essa visão, de fato, pessimista? Ou um bruto realismo que toma forma em cada uma das canções? Afinal, para além de uma imagética sensorial que traz aspectos das múltiplas áreas do conhecimento, ela utiliza a plataforma da música como um espaço confessional e declamatório, em que lida com o luto de perder a mãe – como podemos ver em “Ancestress”, um notável e longo processo de cura, em que as ambiguidades entre o piano e os vocais da cantora erguem-se como uma reflexão memorialística do que se foi e do que não irá mais voltar (uma compreensão tocante que é transposta inclusive para a emocionante rendição da performer).

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Mesmo depois de nos chocar com escolhas artísticas surpreendentes e que ajudaram na cimentação dos álbuns conceituais, Björk permanece nos encantando com investidas que fogem de qualquer coisa que já tenhamos visto antes – e o fato de ficar responsável pela produção a auxilia a concretizar uma mundividência absolutamente espetacular. Em “Mycelia”, por exemplo, a cantora leva o minimalismo a uma representação iconográfica que, a princípio, não faz o menor sentido e que, à medida que nos leva a uma viagem inebriante, passamos a compreender. Afinal, o título da música faz referência a fungos, cuja principal característica é a simbiose (enquanto alguns deles podem ser alucinógenos); em “Sorrowful Soil”, há uma belíssima apresentação a capella que se desenrola em uma multiplicidade assustadora de camadas – e, realmente, quem precisa de instrumentos em 2022?

Cada aspecto das faixas iniciais parece denotar um caminho lógico a ser seguido, que culmina em “Fungal City”: aqui, Björk se vale do improviso justaposto das rapsódias, incluindo o clarinete, o tambor e o violino, em uma exaltação teatral que nutre de semelhanças com George Gershwin e conterrâneos; enquanto isso, a lírica caracteriza de um jeito absurdo e quase non-sense uma cidade fúngica, guiada por versos de adoração que variam desde “escuridão de veludo perfumado” a “sua inteligência celebratória é ridícula” (como se a faixa referenciasse a si própria em uma percepção cartesiana). É possível inclusive dizer que Björk promove uma desconstrução da linguagem, mas sem atingir um nível dadaísta (ainda mais porque esse desejo é quase impossível, considerando a relação entre significantes e significados); a ideia é mergulhar num surrealismo maximizado, que nos transporta para um cosmos intangível e inimaginável.

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Fossora é uma obra-prima que se configura como um dos melhores lançamentos do ano e uma das mais ambiciosas, lado a lado com ‘Homogenic’ e ‘Vulnicura’: uma (des)orgânica e caótica aventura pela mente incontrolável e infinita de uma das maiores artistas de todos os tempos, que merece atenção, ainda que cause, propositalmente, certo desconforto.

Nota por faixa:

1. Atopos, feat. Kasimyn – 5/5
2. Ovule – 5/5
3. Mycelia – 4,5/5
4. Sorrowful Soil – 4,5/5
5. Ancestress, feat. Sindri Eldon – 5/5
6. Fagurt Er í Fjörðum – 5/5
7. Victimhood – 5/5
8. Allow, feat. Emilie Nicolas – 5/5
9. Fungai City, feat. Serpentwithfeet – 5/5
10. Trölla-Gabba, feat. Kasimyn – 4,5/5
11. Freefall – 4,5/5
12. Fossora, feat. Kasimyn – 5/5
13. Her Mother’s House, feat. Ísadóra Bjarkardóttir Barney – 5/5

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Björk é uma das artistas mais únicas da história da música e, ao longo de sua extensa e prolífica carreira, remodelou as inflexões artísticas fonográficas a seu bel-prazer. A artista islandesa sempre trouxe algo de novo para cada um de seus álbuns, afastando-se dos convencionalismos que dominavam épocas determinadas para apostar fichas em um vanguardismo excêntrico e propositalmente excessivo, tornando o trabalho de colocá-la em uma caixinha ou restringi-la a um rótulo impossível. Agora, cinco anos depois do lançamento de ‘Utopia’, ela retorna com um ambicioso e terapêutico compilado de originais intitulado Fossora – cujas concepção e entrega transforma a produção em uma das melhores de sua discografia.

Analisar o trabalho de Björk não é uma tarefa fácil, ainda mais pelo fato de ela não seguir quaisquer estéticas engessadas pelo mainstream ou até mesmo pelo cenário alternativo – que vem se mostrando cada vez mais cheio de emulações e homenagens. É claro que a cantora e compositora não deixa de trazer elementos familiares para essa nova produção, mas prefere arquitetar uma linha de pensamento que dialogue com suas próprias incursões predecessora, como se pudesse encontrar o que precisa dentro de território conhecido. E o resultado é, sem surpresa alguma, diferente de qualquer coisa que já ouvimos neste ano – e digo isso como um elogio, principalmente considerando o processo de construção do disco e as importantes temáticas trazidas pelas canções.

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A artista escolheu “Atopos” como a faixa de abertura dessa inesperada jornada e como lead single – e a própria nomenclatura da música já indica o que podemos esperar do álbum. Se você nunca ao menos cruzou caminho com uma canção composta por Björk, digo que nenhuma das escolhas é por acaso e que cada engrenagem pertence a uma macroestrutura que rompe com as barreiras sonoras e expande-se para teoremas filosóficos e análises sociológicas sobre o homem em si e dentro da sociedade. É a partir daí (e resgatando o conceito de atopia e da efemeridade das sensações de Roland Barthes) que a primeira track insurge, como um arauto do nada e do não-lugar: “estas não são apenas desculpas para se conectar?”, ela pergunta a um interlocutor invisível, destacando a fugacidade de um relacionamento cujos problemas não importam.

De certa maneira, é possível enxergar a visão de Björk como um enfrentamento pessimista da realidade – mas seria essa visão, de fato, pessimista? Ou um bruto realismo que toma forma em cada uma das canções? Afinal, para além de uma imagética sensorial que traz aspectos das múltiplas áreas do conhecimento, ela utiliza a plataforma da música como um espaço confessional e declamatório, em que lida com o luto de perder a mãe – como podemos ver em “Ancestress”, um notável e longo processo de cura, em que as ambiguidades entre o piano e os vocais da cantora erguem-se como uma reflexão memorialística do que se foi e do que não irá mais voltar (uma compreensão tocante que é transposta inclusive para a emocionante rendição da performer).

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Mesmo depois de nos chocar com escolhas artísticas surpreendentes e que ajudaram na cimentação dos álbuns conceituais, Björk permanece nos encantando com investidas que fogem de qualquer coisa que já tenhamos visto antes – e o fato de ficar responsável pela produção a auxilia a concretizar uma mundividência absolutamente espetacular. Em “Mycelia”, por exemplo, a cantora leva o minimalismo a uma representação iconográfica que, a princípio, não faz o menor sentido e que, à medida que nos leva a uma viagem inebriante, passamos a compreender. Afinal, o título da música faz referência a fungos, cuja principal característica é a simbiose (enquanto alguns deles podem ser alucinógenos); em “Sorrowful Soil”, há uma belíssima apresentação a capella que se desenrola em uma multiplicidade assustadora de camadas – e, realmente, quem precisa de instrumentos em 2022?

Cada aspecto das faixas iniciais parece denotar um caminho lógico a ser seguido, que culmina em “Fungal City”: aqui, Björk se vale do improviso justaposto das rapsódias, incluindo o clarinete, o tambor e o violino, em uma exaltação teatral que nutre de semelhanças com George Gershwin e conterrâneos; enquanto isso, a lírica caracteriza de um jeito absurdo e quase non-sense uma cidade fúngica, guiada por versos de adoração que variam desde “escuridão de veludo perfumado” a “sua inteligência celebratória é ridícula” (como se a faixa referenciasse a si própria em uma percepção cartesiana). É possível inclusive dizer que Björk promove uma desconstrução da linguagem, mas sem atingir um nível dadaísta (ainda mais porque esse desejo é quase impossível, considerando a relação entre significantes e significados); a ideia é mergulhar num surrealismo maximizado, que nos transporta para um cosmos intangível e inimaginável.

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Nota por faixa:

1. Atopos, feat. Kasimyn – 5/5
2. Ovule – 5/5
3. Mycelia – 4,5/5
4. Sorrowful Soil – 4,5/5
5. Ancestress, feat. Sindri Eldon – 5/5
6. Fagurt Er í Fjörðum – 5/5
7. Victimhood – 5/5
8. Allow, feat. Emilie Nicolas – 5/5
9. Fungai City, feat. Serpentwithfeet – 5/5
10. Trölla-Gabba, feat. Kasimyn – 4,5/5
11. Freefall – 4,5/5
12. Fossora, feat. Kasimyn – 5/5
13. Her Mother’s House, feat. Ísadóra Bjarkardóttir Barney – 5/5

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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