Ficamos bem mal acostumados. Black Mirror nos introduziu a uma realidade tecnológica subversiva, que desafia nossas percepções sobre como absorvemos e lidamos com essa frenética revolução digital. Como alguém que espera ser exaustivamente surpreendido, digerimos a antologia com fome. Passamos mal do estômago, mas queremos de novo. Pois assim como a tecnologia é uma droga que dilacera os nossos sentidos, assim também o faz a série desenvolvida por Charlie Brooker. E eis que estamos aqui, mais um ano, com novas histórias. A quinta temporada tenta manter-se ávida em seus efêmeros três episódios, que reduziram nossa experiência para uma quantidade bem menor de horas. E esse novo passeio? Vai te fazer passar mais bem do que você de fato gostaria.
Caos, tragédia e conflitos sempre fizeram parte das narrativas da produção. Mas o novo e pequeno ciclo se apresenta um pouco mais singelo. Não diria ruim, mas talvez ele esteja menos “tão Black Mirror” como gostaríamos. E isso não significa que a série tenha perdido o seu valor, mas talvez signifique que sua doentia e psicótica criatividade tenha se perdido um pouco pelo caminho. E em se tratando de Striking Vipers, o capítulo inaugural do programa, temos um roteiro mais otimista, que foca na tecnologia com o uso de seeds que proporcionam uma realidade virtual, usando esse background para uma história que destoa mais dos questionamentos tecnológicos e volta-se para as questões sócio comportamentais, emocionais e psicológicas.
Um quase crossover às avessas de Marvel e DC, Striking Vipers traz Anthony Mackie e Yahya Abdul-Mateen II como dois antigos amigos que passaram boa parte de sua juventude jogando o game que dá o nome ao episódio. Uma mistura de Mortal Kombat com Street Fighter, o jogo retorna à vida dos dois, hoje na vida adulta, dessa vez sob uma máscara high-tech, que permite uma experiência imersiva durante os confrontos, garantindo a liberdade ao jogador de não apenas comandar os movimentos de seu personagem, mas também de usá-lo como bem entender. Aqui, uma simples partida se transforma em um encontro amoroso virtual, onde a tecnologia se transforma no estopim de um questionamento complexo sobre moralidade, monogamia, traição e sexualidade.
Totalmente filmado no Brasil, esse primeiro episódio traz Owen Harris na direção, que explora a luz natural com leveza e sobriedade, construindo uma estética que rapidamente nos remete às cores com filtro cinzento da metrópole São Paulo. E embora alguns detalhes da capital sejam destacados para o deleite dos fãs brasileiros, não espere um easter-egg. O uso da cidade para a construção do episódio não faz absolutamente diferença nenhuma, sendo apenas um fan service adorável pra encher os corações inveterados de orgulho nacional. Mas ainda assim, o contraste da alta tecnologia dos games com a escassez estrutural do município paulista – que peleja entre prédios abandonados e pichados, forma um conceito interessante e garante um gostinho especial à narrativa.
E embora a trama deixe toda a complexidade tecnológica de fora da discussão, Striking Vipers se sustenta no debate sobre as dinâmicas relacionais que emergiram com força na contemporaneidade. Desconfortável e até mesmo angustiante, o episódio nos instiga a refletir sobre os impactos emocionais e psicológicos que essas “várias formas de amor” tem produzido em nós, afetando drasticamente não apenas a vida em sociedade, mas também a individualidade. Nos colocando nos papéis dos protagonistas, instantaneamente nosso pensamento é levado a ponderar suas escolhas. E (muitas vezes) incapazes de chegarmos a uma conclusão, somos obrigados a nos contentar com um desfecho um tanto otimista demais, que pode até não ser tão Black Mirror assim, mas faz jus a sua história.