A vida de filme nacional não é das mais fáceis, de documentário nacional então… Mais difícil ainda. Caso não atraia multidões no primeiro fim de semana, raramente terá vida longa nos cinemas do país. E nessa ânsia do lucro, muitas pérolas acabam se perdendo. E esse parece ser o caso de Black Rio! Black Power!, de Emilio Domingos.
Lançado na última quinta-feira (5), o documentário está com pouquíssimas sessões nos cinemas do Rio de Janeiro. O que beira o absurdo, visto que é um filme que dialoga diretamente com a história e formação cultural e social da própria cidade. O longa revisita a quadra do Grêmio de Rocha Miranda, lar do movimento Soul, ou movimento Black, que tomou os salões das periferias cariocas entre as décadas de 1970 e 1980.
Sob influência das canções norte-americanas, os negros e pobres da cidade passaram a se reunir nesses bailes para ‘tomar sua Coca-Cola, curtir sua dança e dar seus beijos’, como é dito em certo momento do filme. Mais do que isso, porém, esses salões viraram involuntariamente fagulhas políticas, já que eram espalhadas mensagens motivacionais, como ‘estude!’ e ‘você é preto e você é bonito, você tem valor’, para parcelas da sociedade que eram propositalmente escanteadas, alimentando a baixo custo o sistema da época.
Nesse contexto, nights como o Soul Grand Prix e as raízes da (equipe poderosa) Furacão 2000 ferveram a juventude do Rio com passos de dança, liberdade de expressão, mensagens de valorização e muita música boa. Ao som de James Brown, a galera excluída podia enfim se sentir importante, se sentir ser humano.
Dito isso, o trabalho de Emilio Domingos nesse filme é um espetáculo. Se você prestou bem atenção na década que o documentário retrata, deve saber o que estava acontecendo no país naquela época. Em meio à Ditadura Militar, sair nas ruas com um sapato alto, com um cabelo afro já era o bastante para ser enquadrado por vadiagem. Imagine então se reunir em núcleos supostamente político-raciais. Sob o fantasma de um comunismo que jamais chegou perto de acontecer, os bailes Soul foram rapidamente recriminados pelos militares. E como as principais empresas de TV e jornais acabaram apoiando o regime, não demorou para que a valorização dessa cultura black brasileira fosse marginalizada, transformada em coisa de vagabundo.
Então pense na dificuldade de fazer um documentário em vídeo sobre um tema que era extremamente periférico, em uma época em que não havia telefones celulares e nem acesso fácil a câmeras de vídeo. Mais do que isso, abordar um tema que foi propositalmente apagado e recriminado pelo governo e imprensa da época. O trabalho de pesquisa de Emilio e sua equipe foram hercúleos em encontrar vídeos, fotos e reportagens que mostrassem os bailes da época. Inclusive, ele conseguiu recuperar imagens feitas em matérias jornalísticas daqueles tempos que criticavam os bailes. Com esse material, ele subverte o propósito das imagens e as usa como forma de valorizar aquela galera. É muito representativo.
A condução do documentário é feita da forma mais brasileira possível: de forma oral. Emilio entrevista nomes lendários da cena Soul carioca, como Dom Filó – o grande pai do Soul Grand Prix – e Carlos Dafé, o Príncipe do Soul. Mais do que essas lendas vivas, ele vai atrás de agitadores culturais e frequentadores desses bailes. Por meio das histórias contadas por ele, o documentário se desenrola e se expande de forma deliciosa, como conversar com seu avô em um fim de semana ao som de sua música favorita tocando na vitrolinha.
São depoimentos sinceros, riquíssimos em detalhes e muito descontraídos. E há momentos em que o público consegue ver essa galera nas fotos da época para vê-los bem velhinhos logo em seguida. É impactante, porque os espectadores veem todo o seu desenvolvimento, se encantam com o que eles têm a dizer e entendem que mesmo com o tempo tendo passado, eles continuam gigantes. Mais ou menos como ouvir uma canção contagiante.
E há momentos incríveis, como o debate que a mídia da época tentou forçar para descredibilizar o movimento Soul. Eles diziam que era uma tentativa de ‘americanizar’ os brasileiros, já que o povo dançava músicas dos EUA em vez de samba. E esse discurso absurdo, que desconsiderava o contexto de embranquecimento do samba da época, foi prontamente abraçado pelos militantes de esquerda. Ou seja, o Soul apanhava do regime e da esquerda. Era porrada de todo lado em uma galera que só queria dançar, curtir e ser feliz.
Em tempos em que o discurso de igualdade vem crescendo cada vez mais, ter um filme como esse é fundamental. Não existe futuro para quem não conhece seu passado. E para entender a cultura atual, é preciso compreender de onde ela veio. O Soul andou para que o Funk pudesse correr, por exemplo. Black Rio! Black Power! é uma poesia de menos de duas horas, que ensina mais do molejo e espírito do carioca que qualquer aula de antropologia. É uma poesia musical de encher olhos, ouvidos e a alma. É um filme mais que maravilhoso, é necessário.
E a cena final… A chave de ouro de uma obra-prima. Resta torcer para que os cinemas deem uma segunda chance para ele ficar em cartaz pelo menos até a Semana do Cinema, porque ele merece demais ser assistido.
Black Rio! Black Power! está em cartaz nos cinemas.