domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | Cafarnaum – Lirismo na Amarga Vivência da Miséria no Líbano

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O nome peculiar em árabe tem um significado nítido na odisseia do pequeno Zain (Zain Al Rafeea) pelas ruas do Líbano. Cafarnaum (Capharnaüm) significa caos e é exatamente esta a sensação durante o filme, duramente realista e tocante da diretora libanesa Nadine Labaki (E Agora Onde Vamos?). Responsável também pelo roteiro, Labaki promove uma imersão nas dores contundentes de uma sociedade despedaçada, mas combatente às suas mazelas.

Zain é um soldado de resistência desde os primeiros minutos que começamos a acompanhar sua história. Aos 12 anos, ele é preso por apunhalar um homem, ao ser julgado ele decide processar seus pais por tê-lo colocado no mundo. Apenas com essa premissa, Labaki já nos desestabiliza diante da tela, enquanto os depoimentos são tomados perante o juiz, a narrativa apresenta os episódios que desencadearam o atual momento.



É difícil precisar a quantidade de crianças aninhadas ao chão para dormir sob o teto e as paredes de uma construção que Zain chama de casa. As condições de sobrevivência são bastante precárias, a família vive de favor naquele ambiente e em troca Zain trabalha na loja do proprietário.

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Enquanto carrega caixas e mercadorias, o menino sonha cada vez que avista a van trazendo as crianças da escola. Os seus pais, entretanto, têm outros planos para ele e recusam a dar-lhe a chance de estudar, enquanto isso sua irmã mais nova Sahar (Haita ‘Cedra’ Izzam) acaba de ter sua primeira menstruação e o menino sabe o que isso significa: se os pais descobrirem, ela será entregue em casamento ao dono da venda, apesar dos seus 11 anos.

É uma cena tocante quando Zain lava o sangue da roupa da irmã para que os pais não saibam das suas regras e a ensina a esconder o vestígio da sua precoce puberdade. Outro momento doloroso é quando Zain planeja minuciosamente a fuga de Sahar, mas ela é levada para casar-se com um homem anos mais velho. Ele tenta lutar contra os seus pais, mas seus braços franzinos perdem a batalha.

Com o coração em frangalhos, Zain foge de casa e começa sua peregrinação pelas ruas. Ao encontrar com o genérico Homem-Aranha, chamado de Homem-Barata (Joseph Jimbazian), ele chega a um parque de diversões, onde procura emprego, comida e abrigo, mas acaba por encontrar Rahil (Yordanos Shiferaw) – uma imigrante ilegal da Etiópia e mãe solo do pequeno Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), que para trabalhar esconde o filho em carrinho de compras.

O encontro entre Rahil e Zain nos acende uma chama de esperança entre a sujeira das ruas de Beirute, mas o fogo logo se apaga quando Rahil é presa e Zain passa a ter que cuidar sozinho de outra criança de apenas um ano. Assim, nasce o segundo dilema do garoto entre tentar sobreviver à própria sorte ou cuidar de outra criança, tal como ele tentou salvar sua irmã.

O depoimento de Zain perante ao juiz desafia a lógica da beleza do dom da vida, transmitindo uma atemorização de que milhares de crianças já nascem condenadas às ruínas e à miséria. Sair desse círculo não é uma questão de desejo, mas de uma transformação humana e social coletiva. Nadine Labaki toca na ferida dos países subdesenvolvidos, ainda que rodeado de elementos das nações evoluídas, e as situações de tráfico de pessoas, refugiados, tudo pelo olhar de uma criança perdida nas armadilhas do mundo, mas muito mais astuta que os adultos rendidos pelo status vigente.

Cafarnaum consegue conversar com o espectador e detalhar claramente onde habita os problemas de uma sociedade desigual, seja na diferença social, seja na de gênero. Sem apelos visuais, a câmera parece um olho invisível do cotidiano pairando em personagens da vida real. O menino Zain Al Rafeea carrega o roteiro com maestria e todas as cenas são transmitidas com uma arrebatadora e sufocante realidade. O talento de Labaki nos faz esquecer que aqueles personagens são fictícios e aquelas dores não são nossas.

 

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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O nome peculiar em árabe tem um significado nítido na odisseia do pequeno Zain (Zain Al Rafeea) pelas ruas do Líbano. Cafarnaum (Capharnaüm) significa caos e é exatamente esta a sensação durante o filme, duramente realista e tocante da diretora libanesa Nadine Labaki (E Agora Onde Vamos?). Responsável também pelo roteiro, Labaki promove uma imersão nas dores contundentes de uma sociedade despedaçada, mas combatente às suas mazelas.

Zain é um soldado de resistência desde os primeiros minutos que começamos a acompanhar sua história. Aos 12 anos, ele é preso por apunhalar um homem, ao ser julgado ele decide processar seus pais por tê-lo colocado no mundo. Apenas com essa premissa, Labaki já nos desestabiliza diante da tela, enquanto os depoimentos são tomados perante o juiz, a narrativa apresenta os episódios que desencadearam o atual momento.

É difícil precisar a quantidade de crianças aninhadas ao chão para dormir sob o teto e as paredes de uma construção que Zain chama de casa. As condições de sobrevivência são bastante precárias, a família vive de favor naquele ambiente e em troca Zain trabalha na loja do proprietário.

Enquanto carrega caixas e mercadorias, o menino sonha cada vez que avista a van trazendo as crianças da escola. Os seus pais, entretanto, têm outros planos para ele e recusam a dar-lhe a chance de estudar, enquanto isso sua irmã mais nova Sahar (Haita ‘Cedra’ Izzam) acaba de ter sua primeira menstruação e o menino sabe o que isso significa: se os pais descobrirem, ela será entregue em casamento ao dono da venda, apesar dos seus 11 anos.

É uma cena tocante quando Zain lava o sangue da roupa da irmã para que os pais não saibam das suas regras e a ensina a esconder o vestígio da sua precoce puberdade. Outro momento doloroso é quando Zain planeja minuciosamente a fuga de Sahar, mas ela é levada para casar-se com um homem anos mais velho. Ele tenta lutar contra os seus pais, mas seus braços franzinos perdem a batalha.

Com o coração em frangalhos, Zain foge de casa e começa sua peregrinação pelas ruas. Ao encontrar com o genérico Homem-Aranha, chamado de Homem-Barata (Joseph Jimbazian), ele chega a um parque de diversões, onde procura emprego, comida e abrigo, mas acaba por encontrar Rahil (Yordanos Shiferaw) – uma imigrante ilegal da Etiópia e mãe solo do pequeno Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), que para trabalhar esconde o filho em carrinho de compras.

O encontro entre Rahil e Zain nos acende uma chama de esperança entre a sujeira das ruas de Beirute, mas o fogo logo se apaga quando Rahil é presa e Zain passa a ter que cuidar sozinho de outra criança de apenas um ano. Assim, nasce o segundo dilema do garoto entre tentar sobreviver à própria sorte ou cuidar de outra criança, tal como ele tentou salvar sua irmã.

O depoimento de Zain perante ao juiz desafia a lógica da beleza do dom da vida, transmitindo uma atemorização de que milhares de crianças já nascem condenadas às ruínas e à miséria. Sair desse círculo não é uma questão de desejo, mas de uma transformação humana e social coletiva. Nadine Labaki toca na ferida dos países subdesenvolvidos, ainda que rodeado de elementos das nações evoluídas, e as situações de tráfico de pessoas, refugiados, tudo pelo olhar de uma criança perdida nas armadilhas do mundo, mas muito mais astuta que os adultos rendidos pelo status vigente.

Cafarnaum consegue conversar com o espectador e detalhar claramente onde habita os problemas de uma sociedade desigual, seja na diferença social, seja na de gênero. Sem apelos visuais, a câmera parece um olho invisível do cotidiano pairando em personagens da vida real. O menino Zain Al Rafeea carrega o roteiro com maestria e todas as cenas são transmitidas com uma arrebatadora e sufocante realidade. O talento de Labaki nos faz esquecer que aqueles personagens são fictícios e aquelas dores não são nossas.

 

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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