Principal produção original latino-americana do HBO Max de 2025, a série Chespirito: Sem Querer Querendo chegou ao fim nesta semana. Criada por
Roberto Gómez Fernández, a produção adapta a biografia de seu pai, Roberto Gómez Bolaños, intitulada “Sem Querer Querendo” e sucesso de vendas.
A série aborda um pouco da infância de Roberto Bolaños, mas trabalha mais o lado profissional de um dos mais brilhantes roteiristas e atores da história do México. Porém, apesar de ser inspirada na obra biográfica, a própria produção se define como uma ficção. E muito disso se deve às inúmeras brigas que marcaram a vida profissional de Bolaños, que passou de um jovem humilde para a principal mente criativa de uma das maiores emissoras do planeta.
O grande problema da série é justamente essa idealização por parte do filho do homenageado. Ironicamente, o grande mérito da série também é ser idealizada por Roberto. E acredito que isso diga muito sobre as contradições que marcaram a vida do artista. Não é absurdo dizer que a produção se perca entre a poesia e os rancores, faltando um equilíbrio entre elas. Às vezes, é poética até demais. Às vezes, o rancor sentido por certas pessoas fala muito mais alto. E não parece muito adequado que a biografia do autor da frase “a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena” traga alguns episódios tão carregados de ressentimentos assim.
Mas é compreensível, já que um filho que vê o pai trocar a mãe por outra mulher – após casos de traições – não costuma ser exatamente muito receptivo a essa nova pessoa que entra à força em sua vida. Ainda mais quando essa nova mulher é a Dona Florinda, que passa a gerir a vida do pai e a travar batalhas judiciais contra a família ao longo dos anos. Contudo, por mais compreensível que seja, não é bonito. O mesmo se dá na apresentação do intérprete do Quico, que é mostrado como um dos vilões da série, sendo apontado praticamente como o responsável por destruir a Turma do Chaves. Essa questão é tão controversa que seus personagens foram apresentados com nomes fictícios para evitar processos. Eles são praticamente abordados como vilões de novelões mexicanos.
Mais do que só vilanizar excessivamente esses dois personagens, a série acaba suavizando bastante os erros de Roberto, justamente por trazer essa visão idealizada do pai. É complicado cobrar que um filho desconstrua seu herói para o mundo inteiro ver, então já era esperado que houvesse uma “passada de pano”, mas não tão intensa quanto foi na série. Segundo a produção, o grande erro de Chespirito foi ser sonhador e inocente demais, quando há diversos relatos na vida real de que ele era mulherengo, bastante ambicioso e muito orgulhoso.
Inclusive, a relação com Maria Antonieta de las Nieves, a Chiquinha, foi bastante complexa ao longo dos anos. Enquanto a série mostra o Roberto dizendo que sempre a receberá “de braços abertos”, a história real foi marcada por décadas de processos e ações judiciais por conta de violações de direitos autorais. Só que eles se resolveram antes do falecimento do Chespirito, retomando a amizade no fim da vida, então construíram essa relação também de forma idealizada.
Mas nem só de pontos negativos essa série é feita. O lado poético é belíssimo! Os quatro primeiros episódios, que focam mais na infância e juventude de Roberto trazem uma construção nostálgica fabulosa, capazes de transportar o público diretamente para o México da década de 1950, quando as pessoas eram mais inocentes e a tecnologia ainda caminhava a passos mais lentos. Na construção desse ambiente, você se perde pelo encantamento de um jovem que sonha com dias melhores e se apaixona perdidamente por uma garota lindíssima que embarca em seus devaneios e ousa sonhar junto com ele. É uma história de amor interessantíssima de acompanhar.
E essa ambientação retrô ressalta um carinho muito cativante de Roberto Gómez, que não apenas conta a vida do pai, mas indiretamente constrói sua visão de infância. É sério, não existe nada mais bonito do que o conceito de infância na memória de um adulto que foi uma criança feliz. Tudo era bonito, até mesmo capítulos sombrios ganham beleza por conta dessa aura mágica e inocente que a nostalgia cria para preservar a inocência na memória. E a transposição disso para as telas é incrível.
O auge da série é o quarto episódio. Ele dá continuação ao já espetacular terceiro capítulo, que abordou a criação do atrapalhado Chapolin Colorado, e causa verdadeiro fascínio ao contar os bastidores da origem do Chaves. A forma como mesclam as ideias às memórias de Chespirito, que revisita a própria infância e suas próprias vivências para compor a vila e os personagens é perfeita. A junção de emoção e aventura, com o criador colocando o próprio cargo em risco para bancar essa ideia, enquanto vive um momento turbulento na vida pessoal, dá um senso de urgência cativante que logo é substituído pela mais pura poesia audiovisual conforme a vila vai sendo construída e as maiores lendas da TV mexicana vão tomando forma diante de seus olhos. É o episódio que define a série de tão perfeito que é.
Mas o grande mérito da produção é mesmo o elenco. Sério mesmo, o time de casting da série está de parabéns, porque há personagens que parecem verdadeiros clones do elenco original de Chaves e Chapolin. E não é só por questão de aparência, mas de atuação vocal mesmo. Cada vez que Arturo Barba abre a boca, é como se Rúben Aguirre (o Professor Girafales) ressuscitasse e tomasse o corpo do rapaz. O mesmo vale para Juan Lecanda (Quico), que parece o próprio Carlos Villagrán sob efeito da droga rejuvenescedora daquele filme ‘A Substância’, com a Demi Moore. O próprio Pablo Cruz Guerrero é um Chespirito assustadoramente convincente, principalmente quando chega na fase mais velha. É um caso impressionante de casting perfeito.
No fim das contas, a série acaba sofrendo na metade final justamente porque é quando sai a poesia e entra o rancor. Aquele olhar mágico dá lugar a brigas e ressentimentos pessoais, ainda que ainda exista momentos de pura magia pincelados aqui e ali, mas acaba deixando a produção com uma amargura que não combina tanto com o legado do autor. Talvez fosse o caso de não enxugar tanto a trama para desenvolvê-la ao longo de duas temporadas, podendo trabalhar mais os bastidores das séries em uma e mais das polêmicas em outra. É complicado. É uma série tão complexa e contraditória quanto o próprio Chespirito, que deixou um legado de milhões de fãs apaixonados pelo mundo.
É uma produção muito bonita quando se propõe, mas também muito ‘carregada’ nos momentos em que se perde. Ainda assim, é muito interessante, principalmente para quem cresceu com a Turma do Chaves sendo transmitida religiosamente na TV.