Uma ode ao NADA
Tudo neste mundo pode servir como elogio ou como depreciação, dependendo do contexto. Até mesmo o “nada”. Veja o caso da série Seinfeld (1989-1998), por exemplo, tida como a melhor comédia de todos os tempos por muitos, era vendido como o programa sobre o nada. Bem, na verdade tal adjetivo se dava pelo fato de que não existia um enredo fixo, e em sua narrativa o seriado apresentava as minúcias do dia a dia de quatro amigos solteiros em Nova York. Cada pequeno detalhe do que constitui as 24 horas diárias de qualquer um, e suas convenções sociais, eram alvo de discussões na série – tudo abordado com muito humor, é claro. Então, ao contrário de nada, sabíamos o que estes personagens pensavam sobre tudo.
Seguindo totalmente pelo outro espectro, Cinquenta Tons de Cinza é uma série cinematográfica que chega agora ao seu terceiro exemplar e desfecho – assim esperamos e torcemos. Esse terceiro filme, mais do que os anteriores, se encaixa na definição abordada acima: é um filme sobre o nada – e aqui isso é levado no sentido literal.
Não serei injusto em afirmar que os três filmes podem ser definidos assim, porque não podem. O primeiro era sim sobre alguma coisa. Falava sobre um jovem bilionário tido como um dos melhores partidos do país, quiçá do mundo, que elege sua felizarda companheira, nas formas de uma jornalista frígida e pra lá de insossa, somente para revelar ser um tarado adepto do sadomasoquismo. De fato, temos conflito de sobra aqui, com a colisão destes mundos bem distintos. Nas mãos de um roteirista talentoso e de um cineasta renomado, tal premissa poderia render uma pérola. Mas o que ganhamos foi um thriller erótico de mentirinha.
O segundo filme, Cinquenta Tons Mais Escuros, por mais risível que fosse, ainda subvertia os moldes do primeiro, apresentando novos conflitos após o desfecho do anterior (a mocinha cederá às exigências deste rico machista gostosão? E o que o fez ser assim? Um antigo caso volta à tona, como também sua professora no sadomasô). Afinal, é necessário ao menos se ter uma premissa, para ter um roteiro e um filme.
Bom, e o que sobrou depois que todos os conflitos foram resolvidos nos dois primeiros filmes, os personagens apresentados e suas características definidas? A resposta é: NADA. Não sobra absolutamente nada para impulsionar este filme. Vejamos, temos o casamento dos pombinhos Anastasia Steele (Dakota Johnson) e Christian Grey (Jamie Dornan) – e desde a franquia Crepúsculo um casamento não era tão insignificante para a história do cinema. E tão curto, já que tiram o evento de cena nos primeiros minutos. E a vida de casado dos dois, você pergunta. Bem, é igual ao namoro. Não existe evolução nesta narrativa, ou nos personagens em si. Tudo parece estacionado no status quo. Uma continuação só é justificada se existir uma ideia ou um propósito por trás dela. Aqui, o propósito é apenas arrancar dinheiro dos “fiéis”, sem retornar muito.
Ah, se existe algo que possa ser chamado de conflito é o fato da protagonista querer um bebê, enquanto o charme em pessoa de seu marido nega por não estar pronto para dividi-la com a criança. Ele não é simplesmente um encanto. Como não morrer de amores com este exemplo de ser humano. #sqn
Os primeiros dois terços do filme são pura enrolação e encheção de linguiça. A estrutura funciona mais ou menos assim: uma viagem, belas locações em algum lugar sofisticado, uma discussão adolescente por algum motivo besta, de preferência ciúmes, e uma cena de sexo. É claro que não poderia faltar a justificativa para esta trama existir, afinal este é um drama erótico para as jovens mamães, então a cada três cenas, uma é o coito da dupla. O problema é que estes personagens são tão vazios e sem graça que a tal cena, mesmo exibindo seus belos corpos, termina enfadonha.
Nada faz sentido, e jamais acreditamos que estes adultos, com o equilíbrio emocional de adolescentes de 15 anos (as discussões do casal são sempre neste nível, sem qualquer resquício de problemas reais que adultos teriam), possam ser bem sucedidos profissionalmente. Suas qualidades sociais e interações são pobres, para dizer no mínimo. No meio de tanta “complexidade”, “urgência” e “relevância” deste “maravilhoso” texto sobra espaço para uma cena inteira na qual Anastasia decide cortar o cabelo de Christian, ou uma na qual decidem comer sorvete um no corpo do outro. Sim, eles têm tempo de sobra para preencher aqui, não é como se tivessem algo mais importante para falar ou mostrar.
E se nos dois primeiros atos de Cinquenta Tons de Liberdade a sensação é de pura inércia, em seu terceiro ato o filme sai de vez dos trilhos. Para sacudir um pouco as coisas, o longa decide adicionar algo em sua narrativa que possa minimamente se assemelhar a uma trama, daí ganhamos um suspense de quinta, no qual um criminoso arquiteta um plano que deixaria Darth Vader, Hannibal Lecter e o Coringa orgulhosos. O “vilão” aqui é preso, mas consegue liberdade em fração de minutos após ter tentado matar a protagonista, invadindo sua casa, somente para sequestrar alguém próximo a Anastasia (só faltou mesmo amarrar esta pessoa com cordas e deixa-la numa linha de trem, para termos uma ideia do tamanho clichê deste momento), e forçar outra personagem a ser cúmplice de seus atos. Personagem esta que deveria ser inteligente e bem sucedida em sua carreira, mas que consegue com facilidade se tornar piloto de fuga nas tramoias deste antagonista. Simplesmente ridículo.
Cinquenta Tons de Liberdade é o pior filme desta franquia capenga e um dos piores filmes já feitos nos últimos anos, e talvez na história do cinema. É uma vergonha para qualquer um que goste de cinema verdadeiramente. E serve para mostrar a excelência de romances que possuem argumentos e vontade de abordar insights em nossas psiques quando o tema é o difícil relacionamento amoroso humano. Filmes como a trilogia do Antes de Richard Linklater (Antes do Amanhecer, Antes do Pôr do Sol e Antes da Meia Noite) e 500 Dias com Ela, de Marc Webb, ganham ainda mais força quando temos por comparação obras deprimentes como este terceiro filme baseado nos “livros” de E.L. James. A direção de James Foley, o roteiro de Niall Leonard e as atuações da dupla protagonista Johnson e Dornan nada podem fazer contra o argumento nulo da autora. O mais baixo denominador comum acaba de atualizar seus níveis.