domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | Coletivo da Ponte entrega um grande espetáculo com a visceral adaptação de ‘Barrela’, de Plínio Marcos

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Em 1958, seis anos antes do duro golpe militar no Brasil, o aclamado dramaturgo Plínio Marcos lançava a peça ‘Barrela’ – uma das produções mais cruas e potentes da literatura brasileira. A narrativa, baseada em um caso verídico que aconteceu em uma penitenciária na cidade de Santos, foi censurada pelo despido retrato feito acerca do sistema carcerário nacional, cujas denúncias de maus-tratos, barbaridade e negligência atravessariam gerações e se concretizariam com um assunto atemporal. Em 2023, o Coletivo da Ponte trouxe a peça de Marcos de volta à vida no Estúdio de Treinamento Artístico, em São Paulo, arquitetando uma gloriosa adaptação que se consagrou como uma das grandes produções do ano.

Comandada por Gustavo Nolla em sua estreia como diretor, essa nova versão de ‘Barrela’ é mais enxuta, mas com o mesmo peso dramático: o enredo se inicia em uma cela de prisão, no auge da madrugada, e nos apresenta a cinco personagens principais. Fumaça (Mariana Nolla), Tirica (Dayane Cristine), Bereco (Gabriela Bonavita), Louco (Roni Junior) e Portuga (Rafa Oliveira) estão confinados em um barril de pólvora prestes a explodir e que é cimentado pela desconfiança, pela necessidade de sobrevivência e por uma degradação humana que permanece na densa atmosfera da peça do começo ao fim. Conforme segredos são revelados e o lado mais carnal e animalesco de cada indivíduo vem à tona, as coisas começam a se transmutar em uma derradeira compreensão de que voltar ao passado não é uma escolha – e sim parte de uma pena perpétua que os consome minuto a minuto.



Foto: André Dionizio

É notável como os personagens são talhados sob uma estrutura movediça e frágil, tentando recuperar arquétipos para ao menos se sentirem como pessoas, e não como escória. Fumaça emerge como o escape cômico, enquanto Bereco é o líder, o “macho-alfa” de quem todos têm medo; o Louco, talvez, seja o mais equilibrado deles, mesmo infundido em uma insanidade inescapável (afinal, ele se encarcerou em mundo próprio, onde pode fazer o que bem entender e, ao menos, ter um pouco de esperança – por mais deturpada que seja); Tirica esconde um segredo que coloca em xeque seu status dentro da penitenciária, ameaçado pelo odioso Portuga (que também tem muito a provar). Essa configuração é a base de um enredo cujo final já conhecemos e que nos convida a enxergar a realidade com outros olhos – críticos, desprovidos da tão sonhada alienação que nos priva do sofrimento.

A peça é conduzida com exímia pelo diretor, que também interpreta José Claudio, um jovem garoto que é preso por violência e porte de arma e que se torna alvo dos outros detentos – além de ser foco da cena mais cruel do espetáculo. A estrutura minimalista permite que o aplaudível elenco roube os holofotes, ainda que a sonoplastia pose como um empecilho distrativo, por vezes (como transições de luzes que não fazem muito sentido e falhas aqui e ali de efeitos sonoros); de qualquer forma, os deslizes não são fortes o suficiente para nos desviar da beleza da adaptação, que preza por um naturalismo bem-vindo e um complexo equilíbrio entre drama, tragédia e comédia que não é visto com tanta frequência como imaginamos.

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Foto: André Dionizio

O ponto de engate é, como já mencionado, os atores e atrizes – e, como alguém que assistiu à primeira versão de ‘Barrela’, é notável como o trabalho corporal e performático ultrapassa as expectativas em uma sólida engrenagem que revela um incrível amadurecimento. Enquanto todos têm seu momento de brilhar, alguns chamam mais a atenção pelo comprometimento ao papel, pela entrega das falas e por se sentirem confortáveis com a tarefa que lhes foi atribuída. Há alguns problemas de cadência vocal e uma repetição incessante de palavrões que deixa o processo um tanto quanto cansativo, mas nada que uma dose reforçada de quebras de expectativa e de chocantes momentos que nos faça retornar aos trilhos.

‘Barrela’ pode ter tido apenas uma apresentação, mas conseguiu, em pouco mais de uma hora, transforma-se numa das melhores investidas do ano. E, proposital ou não, a única luz branca no final de uma drástica sequência de eventos levanta uma pontinha de esperança de que, em algum momento, as coisas possam melhorar.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em 1958, seis anos antes do duro golpe militar no Brasil, o aclamado dramaturgo Plínio Marcos lançava a peça ‘Barrela’ – uma das produções mais cruas e potentes da literatura brasileira. A narrativa, baseada em um caso verídico que aconteceu em uma penitenciária na cidade de Santos, foi censurada pelo despido retrato feito acerca do sistema carcerário nacional, cujas denúncias de maus-tratos, barbaridade e negligência atravessariam gerações e se concretizariam com um assunto atemporal. Em 2023, o Coletivo da Ponte trouxe a peça de Marcos de volta à vida no Estúdio de Treinamento Artístico, em São Paulo, arquitetando uma gloriosa adaptação que se consagrou como uma das grandes produções do ano.

Comandada por Gustavo Nolla em sua estreia como diretor, essa nova versão de ‘Barrela’ é mais enxuta, mas com o mesmo peso dramático: o enredo se inicia em uma cela de prisão, no auge da madrugada, e nos apresenta a cinco personagens principais. Fumaça (Mariana Nolla), Tirica (Dayane Cristine), Bereco (Gabriela Bonavita), Louco (Roni Junior) e Portuga (Rafa Oliveira) estão confinados em um barril de pólvora prestes a explodir e que é cimentado pela desconfiança, pela necessidade de sobrevivência e por uma degradação humana que permanece na densa atmosfera da peça do começo ao fim. Conforme segredos são revelados e o lado mais carnal e animalesco de cada indivíduo vem à tona, as coisas começam a se transmutar em uma derradeira compreensão de que voltar ao passado não é uma escolha – e sim parte de uma pena perpétua que os consome minuto a minuto.

Foto: André Dionizio

É notável como os personagens são talhados sob uma estrutura movediça e frágil, tentando recuperar arquétipos para ao menos se sentirem como pessoas, e não como escória. Fumaça emerge como o escape cômico, enquanto Bereco é o líder, o “macho-alfa” de quem todos têm medo; o Louco, talvez, seja o mais equilibrado deles, mesmo infundido em uma insanidade inescapável (afinal, ele se encarcerou em mundo próprio, onde pode fazer o que bem entender e, ao menos, ter um pouco de esperança – por mais deturpada que seja); Tirica esconde um segredo que coloca em xeque seu status dentro da penitenciária, ameaçado pelo odioso Portuga (que também tem muito a provar). Essa configuração é a base de um enredo cujo final já conhecemos e que nos convida a enxergar a realidade com outros olhos – críticos, desprovidos da tão sonhada alienação que nos priva do sofrimento.

A peça é conduzida com exímia pelo diretor, que também interpreta José Claudio, um jovem garoto que é preso por violência e porte de arma e que se torna alvo dos outros detentos – além de ser foco da cena mais cruel do espetáculo. A estrutura minimalista permite que o aplaudível elenco roube os holofotes, ainda que a sonoplastia pose como um empecilho distrativo, por vezes (como transições de luzes que não fazem muito sentido e falhas aqui e ali de efeitos sonoros); de qualquer forma, os deslizes não são fortes o suficiente para nos desviar da beleza da adaptação, que preza por um naturalismo bem-vindo e um complexo equilíbrio entre drama, tragédia e comédia que não é visto com tanta frequência como imaginamos.

Foto: André Dionizio

O ponto de engate é, como já mencionado, os atores e atrizes – e, como alguém que assistiu à primeira versão de ‘Barrela’, é notável como o trabalho corporal e performático ultrapassa as expectativas em uma sólida engrenagem que revela um incrível amadurecimento. Enquanto todos têm seu momento de brilhar, alguns chamam mais a atenção pelo comprometimento ao papel, pela entrega das falas e por se sentirem confortáveis com a tarefa que lhes foi atribuída. Há alguns problemas de cadência vocal e uma repetição incessante de palavrões que deixa o processo um tanto quanto cansativo, mas nada que uma dose reforçada de quebras de expectativa e de chocantes momentos que nos faça retornar aos trilhos.

‘Barrela’ pode ter tido apenas uma apresentação, mas conseguiu, em pouco mais de uma hora, transforma-se numa das melhores investidas do ano. E, proposital ou não, a única luz branca no final de uma drástica sequência de eventos levanta uma pontinha de esperança de que, em algum momento, as coisas possam melhorar.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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