Ver Keira Knightley em um papel de época não é surpresa para ninguém. Ao longo da carreira, a atriz se destacou em diversas produções que retratam séculos passados – como é o caso da adaptação do clássico de Jane Austen, Orgulho e Preconceito, de Desejo e Reparação, Anna Karenina, Um Método Perigoso e tantos outros. No entanto, apesar de não sair de sua zona de conforto no que diz respeito à escolha de papeis, sua atuação em Colette pode ter sido a de maior destaque até agora, muito por conta do material que tinha nas mãos: a história real da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette – bissexual, adepta do poliamor em pleno século XIX e candidata ao Prêmio Nobel de Literatura após parar de dedicar seu talento na escrita para fazer a fama do marido embuste** Willy (Dominic West).
O longa com direção e parte do roteiro de Wash Westmoreland (que também escreveu e dirigiu o elogiadíssimo Para Sempre Alice) aposta na clássica fórmula de cinebiografias ao contar a trajetória da romancista francesa. Nas quase duas horas de filme, ele segue a linearidade da história, não brinca com passado/futuro inserindo uma trilha sonora atual (como acontece em Maria Antonieta, de Sofia Coppola, por exemplo) e nem traz enquadramentos ousados. Porém, ainda assim, consegue se destacar ao concentrar sua força na personalidade da protagonista – uma mulher à frente do seu tempo, que dialoga muito com o discurso feminista de hoje – e na atuação de Keira Knightley, que consegue transitar muito bem entre o jeito doce e submisso da Colette do início do filme à mulher forte e independente que surge do meio para o final. O que inevitavelmente incomoda é o fato da adaptação de uma trama tão francesa mostrar seus personagens falando o marcante inglês britânico; mas, levando em conta a liberdade poética da arte, dá para relevar e tentar ignorar a fala para se transportar para a Paris da época. Uma Paris que, apesar da suposta modernidade, parecia ser atrasada demais para alguém como a escritora, diga-se de passagem.
A história começa mostrando o início do relacionamento de Willy e Colette, quando a garota ainda morava no interior da França e só vislumbrava Paris no enfeite que o pretendente tinha dado para ela. Até que os dois finalmente se casam – para a surpresa de todos que conheciam a fama de mulherengo do rapaz – e a jovem sai de sua casa para viver ao redor da esnobe sociedade parisiense. Mesmo nessa época, quando ainda era uma garota deslumbrada com o mundo e cega de amores pelo marido, Sidonie-Gabrielle já mostrava traços de sua personalidade ao preferir o conforto ao glamour na escolha dos vestidos e por não deixar de responder com ironia as alfinetadas maldosas de quem não entendia porque o galanteador Willy estava com uma mulher simples como ela. Por mais que não gostasse do círculo de amigos do esposo e se identificasse mais com uma tartaruga cheia de pedras preciosas (uma das excentricidades do meio) do que com qualquer um deles, a futura romancista resistia sem abaixar a cabeça – para orgulho do marido, que exibia sua beleza e carisma como um troféu.
Com pose de intelectual e o olhar superior de quem já conhece muito do mundo, Willy fazia seu nome como escritor; no entanto, como tinha mais ideias do que verdadeiro talento para a escrita, contratava ghost writers para fazerem o serviço enquanto conquistava a fama. Essa mesma personalidade dúbia também estava presente no casamento, já que o suposto romancista fazia juras de amor e fidelidade à Colette ao mesmo tempo em que galanteava várias outras mulheres (mesmo na época em que o relacionamento dos dois ainda era monogâmico) e se enrolava em dívidas e mais dívidas por conta dos gastos com seus casos amorosos. Até que o problema com dinheiro fica tão insustentável que ele chega ao ponto de não ter mais como pagar quem escrevia seus romances – e é aí que resolve testar a esposa no papel de sua “escritora fantasma”, pedindo que ela aproveite as memórias de sua adolescência e juventude para fazer seu novo romance. O resultado é “Claudine”, uma série de livros que, inicialmente, foi recusada pelo marido por parecer “feminina demais”, mas que se torna sensação em toda a França – principalmente entre as jovens moças – desde o primeiro volume.
Conforme a fama dos livros aumenta, mais vemos Willy tirando proveito do talento de Colette. Em um dos momentos mais emblemáticos do relacionamento amoroso/profissional abusivo, ele chega a trancar a esposa dentro de um quarto até que ela escreva o máximo possível da história – e por isso é tão prazeroso quando, finalmente, a protagonista consegue começar a criar seu próprio destino em vez de viver para satisfazer às ambições do marido. Por mais que Dominic West tenha conseguido criar um Will carismático, difícil não se revoltar ao ver como ele sugava a energia da companheira, e também não dá para negar que ele só aceitava o relacionamento dela com outras mulheres por uma questão de fetichização lésbica – já que, em vários momentos, fica bem claro que a relação com outros homens não seria tolerada. Fidelidade, neste caso, tinha a ver com gênero – como aponta a escritora em um dos diálogos com o marido -, por mais que o próprio Will só se envolvesse com o sexo oposto.
Para quem ainda não conhecia a fundo a história da autora do célebre romance “A Vagabunda”, ver a jovem deixar de ser a moça com duas tranças longas e submissa a Willy e se tornar a mulher com um moderno corte curto, maquiagem pesada e casos extraconjugais com mulheres pode parecer uma reviravolta e tanto. Porém, Knightley consegue entregar as nuances necessárias para que o caminho de transição e descoberta da personagem passe verdade e convença o espectador. A leveza que ela começa a carregar no olhar ao se relacionar com Missy (Denise Gough) também revela, sem palavras, como o relacionamento com o marido era nocivo – por mais que, profissionalmente, (nos momentos em que ele não a trancava no quarto, é claro), os dois tenham formado uma boa dupla com a criação de tudo o que dizia respeito à personagem Claudine.
Mas vale ressaltar que a atuação da atriz não é o único ponto positivo aqui. A produção também merece aplausos – os mesmos que, acertadamente, fecham a história na cena final – por trazer uma lição de empoderamento feminino, liberdade sexual, discussão de gênero e identidade através da trajetória de uma personalidade do final do século XIX. Mostrando o passado sem deixar de dialogar com temas tão presentes no cenário atual, Colette é o filme perfeito para um momento em que discursos de intolerância parecem ganhar mais força e para mostrar todo o poder de uma mulher que decide ser a protagonista de seu próprio enredo. É girl power em sua melhor forma, e antes mesmo do termo existir. Sem dúvidas, inspirador!