Temas como maldições, pactos, rituais, possessões, assombrações, são sempre recorrentes em milhares de filmes de terror. O que vai modificar a novidade na condução desses temas, é o desenvolvimento final de tudo, e de como a narrativa após seu desfecho, brincará ainda com a mente do espectador. ‘Hereditário‘, do estreante Ari Aster, segue muito o rumo daqueles clássicos que o Cinema de Horror abraçou, mas consegue exatamente pegar toda essa tradição e criar algo envolvente, inteligente, intrigante e, de fato, perturbador. Tanto que até mesmo quem está acostumado com o terror diluído para adolescentes, poderá se incomodar de verdade. E profundamente!
A seguir, todos os parágrafos terão SPOILERS!
Tudo se inicia com o falecimento da avó. Depois de sua morte, símbolos, escritas, e pistas visuais começam a não só surgir pra alguns membros da família, como também parecem se revelar perigosos. Captamos a intenção de algumas delas (as miniaturas espelhando acontecimentos familiares, o triângulo no pé da cama e as palavras em outras línguas escritas na parede do quarto), e outras, o diretor parece apenas nos dar uma previsão do que está por vir (o poste focado na estrada e a cabeça da pomba sendo cortada). Alguns outros elementos visuais acompanharão a narrativa, e farão ainda mais sentido no terceiro e último ato, como o símbolo no cordão da velha morta e o livro sobre espiritismo com dizeres que terão mais coerência ao final da história.
O fato é que tudo está muito bem orquestrado, e é regido de maneira paciente e reveladora por Aster, que tem em seu domínio Toni Collete, naquela que pode ser uma de suas melhores performances da carreira. Mas falar de Collete é algo obrigatório. A atriz é uma explosão de sentimentos em cena, colocando tristeza, desespero, fúria e descontrole quase que numa tacada só. Até porque a transformação de sua personagem Annie é a mais visceral e intensa, e certamente é o grande fio condutor da trama, exigindo uma entrega absoluta da atriz. Duas cenas fariam Collete ter algum prêmio fácil: a que ela desabafa sobre sua vida quando está num grupo anônimo de ajuda (a tristeza acumulada que solta de maneira gradativa é impressionante!) e o estouro arrebatador de raiva e arrependimento na mesa de jantar, sobre seu filho Peter. Ao final, quando ela já parece estar completamente ensandecida, é um show à parte.
O roteiro de Aster também choca o espectador num plot twist inicial de cair o queixo. O acidente que provoca a morte da estranha Charlie, é ousado, forte e um dos elementos mais provocativos no desenvolvimento da tragédia que assolará a família. Curiosamente, ela perde a cabeça da mesma forma que gostava de brincar arrancando a dos pássaros. Charlie era uma menina que não era muito ligada à mãe, e sim, à sua avó… um elo que ficará mais plausível no final da trama. Steve, o pai, era o “estranho naquele ninho”. Um forasteiro que não levava o sangue da família, e por isso, não era digno de pertencer ao rito final. Seu corpo não era pra estar entre a adoração, e por isso, terminou queimado como todo objeto despurificado. Não à toa, dentro da trama, é ele inclusive o mais sensato de todos. E Peter, talvez, foi quem mais sofreu a mudança do objetivo secreto. O primogênito da família, era o acordo perfeito para se tornar Paimon, o 8º Rei do Inferno. Um acordo que a velha matriarca tentou fazer com Charlie, mas que só era possível em um corpo masculino, como ela mesma explica. E o desfecho é assombroso quando exatamente essa revelação acontece!
Aliás, tal como o filme ‘A Bruxa‘ (da mesma produtora), a manifestação do mau aqui é exaltante e altamente desagradável. O espectador assiste a entrega de pessoas inocentes para o surgimento de seres malignos. Se naquele, um animal pode ter sido ser um canal direto para o Mal, aqui, pessoas obcecadas e cheias de interesses obscuros carregam a alma de um jovem para o nascimento de uma entidade diabólica. E, sem dúvida, toda meia hora final, com Toni Collete correndo pelas paredes e batendo a cabeça assustadoramente no teto (!!!), culminando em sua tenebrosa decapitação, vai ser tão traumatizante quanto presenciarmos os últimos minutos com pessoas nuas dentro de uma casa da árvore em uma adoração perturbadoramente satânica.
Mas infelizmente, muitos vão sair do cinema reclamando do final. O teor pesado cai como uma avalanche sobre o espectador, o clima é de puro desconforto e os que ainda tinham expectativas “tranquilizantes” para o término, possivelmente não irão gostar. Mas aqueles que percebem a grandiosidade de uma obra quando ela provoca interpretações e debates intensos – e uma vontade macabra de revisão! -, terão em ‘Hereditário‘ um inesquecível exemplar.
Confira nossa crítica com SPOILER: