Cuidado: spoilers da trama à frente.
Está na hora de desafiar a gravidade!
Em 1995, o autor Gregory Maguire resolvia expandir o icônico universo de ‘O Mágico de Oz’, criado por L. Frank Baum, com um drama político revisionista intitulado ‘Wicked’. Não levou muito tempo até que o romance, que apresentou uma nova versão de clássicos personagens da trama original, fosse adaptado para os palcos da Broadway através de um musical que caiu no gosto da crítica e do público – e que levou diversos prêmios para casa. Agora, somos convidados a revisitar esse cosmos com a antecipadíssima adaptação cinematográfica estrelada por ninguém menos que Cynthia Erivo e Ariana Grande.
A trama é ambientada em Oz e acompanha Elphaba (Erivo), uma jovem que sempre foi excluída por sua aparência exótica – visto que ela nasceu com a pele verde. Renegada pelo próprio pai e culpando-se pela deficiência física da irmã, Nessarose (Marissa Bode), ela viveu às escondidas e em segundo plano, emergindo como protetora da caçula da família. Ao levá-la para a prestigiada Universidade de Shiz, Elphaba conquista a atenção de Madame Morrible (Michelle Yeoh), uma poderosa feiticeira e diretora da instituição que vê na garota um potencial inimaginável de magia. Ela, então, é admitida como uma das alunas da Universidade, sendo forçada a dividir quarto com a fútil e mimada Galinda (Grande).
A princípio nutrindo de um ódio mútuo, Elphaba e Galinda acabam se tornando melhor amigas com o passar do tempo e percebem que algo muito errado está se apoderando de Oz. Para além da ascensão do domínio humano, os animais, outrora professores, acadêmicos, cientistas e dotados das mesmas capacidades motoras que as outras pessoas, estão perdendo tais habilidades em uma artimanha que precisa ser descoberta. Elphaba, então, resolve viajar à Cidade das Esmeraldas, capital de Oz, ao lado de Galinda para descobrir o que está acontecendo e, com isso, salvar a todos. Mas as coisas não são tão fáceis como imaginou – e ela será obrigada a enfrentar artifícios mortais para conseguir o que deseja.
O longa-metragem fica a encargo do talentoso diretor Jon M. Chu, que já possui uma história significativa com ótimas adaptações. Afinal, em 2018, ele presenteou os fãs de comédias românticas com o ótimo ‘Podres de Ricos’, e encabeçou a releitura fílmica de ‘Em um Bairro de Nova York’ em 2021 – denotando um olho perspicaz e cauteloso em produções de grande calibre. Agora, Chu mergulha no primeiro blockbuster de sua carreira com um acerto aplaudível, garantindo que todos os elementos da amada peça original sejam transpostos com honrarias às telonas, conforme expande essa mitologia com incursões apaixonantes e envolventes. É notável o domínio de câmera do cineasta e a que forma com que conduz as vibrantes sequências musicais, sabendo dosar frenesis dançantes e momentos dramáticos e íntimos a fim de fornecer dinamismo à obra – e, é claro, homenageando seus predecessores.
Chu é auxiliado pelas mãos das roteiristas Dana Fox e Winnie Holzman, esta responsável pelo musical original ao lado de Stephen Schwartz. E, se os palcos permitiram que se criasse mágica, a transposição aos cinemas abriu espaço para revoluções dentro do próprio enredo como promessa de aceitação e de agradabilidade aos espectadores – sejam eles derradeiros fãs do gênero, do elenco ou apenas procurando por uma boa produção. Percebemos o carinho que esse trio possui com os protagonistas e coadjuvantes, assegurando que nos conectemos com cada um deles nas mais diversas maneiras e afastando-os das fórmulas maniqueístas de obras similares.
O cuidado estético estende-se a outros âmbitos do longa: a fotografia de Alice Brooks, que tornou-se alvo de críticas infundadas por uma dessaturação de cores proposital, arquiteta uma amálgama entre o fabulesco o real, a fantasia e a concretude, apostando fichas em uma mixórdia que puxa certos elementos do realismo mágico para tematizar conspirações políticas, segregações sociais e prospectos falsos à medida que são guiadas por feitiços, criaturas mágicas e aparatos tecnológicos. Myron Kerstein, responsável pela montagem, imprime oscilações de ritmo necessárias para que o projeto não se incline nem à exaustão, nem à monotonia – certificando-se de que as surpreendentes duas horas e quarenta minutos de tela passem em um piscar de olhos e nos fazendo ansiar pelo segundo capítulo dessa duologia.
Tudo culmina no trabalho admirável do elenco, com destaque, obviamente, às performances de Erivo e Grande. Ao encarnar Elphaba, Erivo consegue desfrutar de sua carreira no teatro (sendo detentora de um prêmio Tony, inclusive) e trazer novos aspectos àquela que se transformaria na icônica Bruxa Má do Oeste – singrando pelas complexidades de uma justiceira social que sabe o que é ser diferente e ser marginalizada pelos outros; Grande, por sua vez, explode como um hilário escape cômico, pintado na mais pura egolatria e vaguidão que, na verdade, esconde um coração benévolo que está apenas tropeçando ao se encontrar. Funcionando sozinhas e em conjunto (vide o ótimo número “Loathing”), a química das duas atrizes é tocante e invejável do começo ao fim – e não ficaria surpreso se ambas conquistassem indicações ao Oscar.
Enquanto Grande fornece um lado diferente de Galinda (ou Glinda, como ficaria conhecida na metade final da produção) e busca ineditismos que podem ser vistos em “Popular”, por exemplo, Erivo é responsável pela espetacular rendição final da primeira parte, lançando-se a uma catártica e operística performance de “Defying Gravity” que encanta até mesmo os mais céticos. É claro que elas não são as únicas a brilhar no filme: Yeoh traz uma pose caprichosa de clássicas antagonistas para dar vida a Madame Morrible; Jonathan Bailey diverte-se como o charmoso e despreocupado Fiyero, que vira aliado de Galinda e Elphaba; e Jeff Goldblum fornece uma remodelagem espetacular do Mágico de Oz, navegando por uma espécie de figura paterna, protetora e onisciente que, na verdade, não passa de um charlatão cobiçante por poder.
A primeira parte de ‘Wicked’ é nada menos que uma obra-prima cinematográfica, sagrando-se um dos grandes títulos do ano e uma das melhores adaptações do século. Contando com um comprometimento louvável e emocionante de cada uma das partes envolvidas, a produção encontra sucesso em saber dosar os caprichos dos musicais a uma profundidade emocional condizente e aprazível.