quinta-feira , 21 novembro , 2024

Crítica | Coringa – Subversivo e complexo, o melhor filme de 2019

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Filme Assistido durante o Festival de Toronto 2019

Ao som das notícias vindas de um rádio antigo, seus traços começam a ser formados. Cores quentes como o vermelho e o azul desenham o seu rosto pálido de pintura circense, que gradativamente ganha as feições de um palhaço. Ainda sem o seu sorriso largo e colorido que extrapola os limites de seus lábios, Joaquin Phoenix tenta fazer surgir um sorriso verdadeiro. Estica o rosto e se depara com seu conflitante olhar tristonho no espelho. Se rir é um santo remédio, no caso de Arthur Fleck, é uma grave doença. Mas ainda insistindo em uma alegria plástica, ele se esforça, mas é incapaz de controlar as lágrimas que escapam pelo canto dos olhos, criando um rastro de tinta azul em sua face esguia.



Coringa é fruto de uma tristeza inimaginável na alma de um homem. Como uma figura nascida sem lar e trazida para um seio familiar doentio, ele é o reflexo de uma vida de alienação parental, abusos e abandono. Acostumado a isso, o personagem – até então um homem consciente de sua complexidade mental e plenamente medicado a fim de controlá-la – constrói uma fortaleza de isolamento ao seu redor. Ele até que se esforça, quer ser sociável, gentil e compassivo. Tem uma fala mansa, olhos confusos e perdidos e uma tristeza inexplicável, que poderiam facilmente compreender aspectos de uma personalidade borderline ou de alguém que sofre de depressão. E aqui, Phoenix entrega esse emaranhando febril de uma mente calejada, que queria ser saudável, mas parece que ninguém está disposto a ajudá-lo a chegar nisso.

Essa construção complexa de Arthur Fleck é um dos aspectos mais fascinantes da história de origem de um dos maiores e mais consagrados vilões das histórias em quadrinhos. Como um agente do caos, ele é introduzido em seu filme solo como um fruto desse mesmo caos, um homem comum que tinha sonhos e ambições saudáveis, mas viu todas elas se desvanecerem no vento em virtude da mais completa sensação de abandono. E o cineasta Todd Phillips nos mostra exatamente isso. Coringa não é uma figura insana sem propósito. Ele é uma criação do colapso da sociedade contemporânea, em meio à ruptura de princípios éticos e morais. Como alguém nascido em uma terra sem lei – a Gotham City de 1980, uma clara referência à Nova York do mesmo período – ele surge como o mal necessário, o mártir de uma cidade cujas instituições e sistemas não mais funcionam e são críveis. E onde não há ordem, o caos sempre impera. E é assim que nasce o palhaço por trás do singelo homem de ombros caídos e corpo esguio.

Mas antes de chegar em sua eclosão máxima, no nascimento de seu lado vilanesco, Coringa apresenta à audiência um Arthur Fleck identificável. Tratado a vida inteira como uma piada, um homem sem lar, o conhecemos como alguém que sofreu demais pelos traumas da vida. Nesse contexto, o diretor Todd Phillips nos presenteia com uma percepção apurada e precisa do vilão antes de receber esse título. E impactados por sua sofrida trajetória, nos compadecemos de Fleck, que se transforma em uma visão da própria sociedade mundial, se tornando um fragmento de tantas histórias reais. Suas dores, seu pesar e seus anseios representam muitos de nós, fazendo com que a linha de distanciamento que nos separa da loucura ensandecida do personagem suma, nos levando a dar um passo em direção a ele.

Essa construção tão simbólica e complexa do Coringa faz com que o filme cruze as fronteiras do gênero de adaptação de quadrinhos, se tornando de fato uma obra-prima da sétima arte. Abordando a psique humana de Arthur Fleck com precisão, o cineasta – cujas origens remetem à trilogia Se Beber Não Case – presenteia o público com um filme espetacular, roteirizado de maneira estratégica e dirigido com delicadeza e profundidade. Esse trabalho técnico é ainda mais hipnotizante ao contemplarmos a caracterização de Joaquin Phoenix como o vilão. Com 23 quilos a menos, conhecemos uma versão completamente diferente da atuação do ator. Cadavérico, seus ossos estão aparentes e saltados moldando uma figura assustadora do personagem. Com sua coluna reclinada, evidenciando a fragilidade de sua forma física, ele ainda insiste em alguns passos de dança, cria uma plateia cativante ao seu redor e contorce seu corpo com uma antagônica leveza, de quem busca se encontrar em uma arte na qual ele não parece dominar.

Em um constante contraste entre quem Arthur Fleck gostaria de ser – um comediante stand-up – e quem de fato ele acaba se tornando, a nova versão do Coringa enche olhos com as lágrimas mais genuínas, justamente por transformar a essência de uma das figuras mais conhecidas da cultura POP em um símbolo do cinema contemporâneo do mais alto escalão. Visualmente belo, o longa ainda conta com uma fotografia urbana cativante, que faz uso de elementos como fogos de artifício e a sombriedade das sujas ruas de Gotham, além de explorar a excepcional linguagem corpora de Phoenix para construir sua beleza plástica. Com uma trilha sonora adaptada que resgata clássicas canções de musicais dos anos 30 e 40, a adaptação dos quadrinhos ainda traz referências a Fred Astaire e contempla os fãs da Era de Ouro do cinema com a música Smile, de Charles Chaplin, do filme Tempos Modernos.

Fazendo da sua trilha o guia das emoções e das sensações de Coringa, Todd Phillips usa a música como um maestro para conduzir o nível de intensidade da narrativa, nos fazendo ainda ouvir o hit Laughing, de The Guess Who, pela própria e pesada voz de Joaquin Phoenix. Dramático, visceral, voraz e violento, a nova versão do vilão inaugura um novo momento na história da Warner/DC, representando o zeitgeist de maneira brilhante, à medida que abre o caminho para que mais novas adaptações de quadrinhos entrem para o hall de grandes produções da história do cinema. Dilacerado e honesto, Coringa é o filme que o mundo precisa assistir e é o cumprimento de uma antiga promessa feita aos fãs da DC. Preparem-se para o melhor filme de 2019.

 

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Coringa é fruto de uma tristeza inimaginável na alma de um homem. Como uma figura nascida sem lar e trazida para um seio familiar doentio, ele é o reflexo de uma vida de alienação parental, abusos e abandono. Acostumado a isso, o personagem – até então um homem consciente de sua complexidade mental e plenamente medicado a fim de controlá-la – constrói uma fortaleza de isolamento ao seu redor. Ele até que se esforça, quer ser sociável, gentil e compassivo. Tem uma fala mansa, olhos confusos e perdidos e uma tristeza inexplicável, que poderiam facilmente compreender aspectos de uma personalidade borderline ou de alguém que sofre de depressão. E aqui, Phoenix entrega esse emaranhando febril de uma mente calejada, que queria ser saudável, mas parece que ninguém está disposto a ajudá-lo a chegar nisso.

Essa construção complexa de Arthur Fleck é um dos aspectos mais fascinantes da história de origem de um dos maiores e mais consagrados vilões das histórias em quadrinhos. Como um agente do caos, ele é introduzido em seu filme solo como um fruto desse mesmo caos, um homem comum que tinha sonhos e ambições saudáveis, mas viu todas elas se desvanecerem no vento em virtude da mais completa sensação de abandono. E o cineasta Todd Phillips nos mostra exatamente isso. Coringa não é uma figura insana sem propósito. Ele é uma criação do colapso da sociedade contemporânea, em meio à ruptura de princípios éticos e morais. Como alguém nascido em uma terra sem lei – a Gotham City de 1980, uma clara referência à Nova York do mesmo período – ele surge como o mal necessário, o mártir de uma cidade cujas instituições e sistemas não mais funcionam e são críveis. E onde não há ordem, o caos sempre impera. E é assim que nasce o palhaço por trás do singelo homem de ombros caídos e corpo esguio.

Mas antes de chegar em sua eclosão máxima, no nascimento de seu lado vilanesco, Coringa apresenta à audiência um Arthur Fleck identificável. Tratado a vida inteira como uma piada, um homem sem lar, o conhecemos como alguém que sofreu demais pelos traumas da vida. Nesse contexto, o diretor Todd Phillips nos presenteia com uma percepção apurada e precisa do vilão antes de receber esse título. E impactados por sua sofrida trajetória, nos compadecemos de Fleck, que se transforma em uma visão da própria sociedade mundial, se tornando um fragmento de tantas histórias reais. Suas dores, seu pesar e seus anseios representam muitos de nós, fazendo com que a linha de distanciamento que nos separa da loucura ensandecida do personagem suma, nos levando a dar um passo em direção a ele.

Essa construção tão simbólica e complexa do Coringa faz com que o filme cruze as fronteiras do gênero de adaptação de quadrinhos, se tornando de fato uma obra-prima da sétima arte. Abordando a psique humana de Arthur Fleck com precisão, o cineasta – cujas origens remetem à trilogia Se Beber Não Case – presenteia o público com um filme espetacular, roteirizado de maneira estratégica e dirigido com delicadeza e profundidade. Esse trabalho técnico é ainda mais hipnotizante ao contemplarmos a caracterização de Joaquin Phoenix como o vilão. Com 23 quilos a menos, conhecemos uma versão completamente diferente da atuação do ator. Cadavérico, seus ossos estão aparentes e saltados moldando uma figura assustadora do personagem. Com sua coluna reclinada, evidenciando a fragilidade de sua forma física, ele ainda insiste em alguns passos de dança, cria uma plateia cativante ao seu redor e contorce seu corpo com uma antagônica leveza, de quem busca se encontrar em uma arte na qual ele não parece dominar.

Em um constante contraste entre quem Arthur Fleck gostaria de ser – um comediante stand-up – e quem de fato ele acaba se tornando, a nova versão do Coringa enche olhos com as lágrimas mais genuínas, justamente por transformar a essência de uma das figuras mais conhecidas da cultura POP em um símbolo do cinema contemporâneo do mais alto escalão. Visualmente belo, o longa ainda conta com uma fotografia urbana cativante, que faz uso de elementos como fogos de artifício e a sombriedade das sujas ruas de Gotham, além de explorar a excepcional linguagem corpora de Phoenix para construir sua beleza plástica. Com uma trilha sonora adaptada que resgata clássicas canções de musicais dos anos 30 e 40, a adaptação dos quadrinhos ainda traz referências a Fred Astaire e contempla os fãs da Era de Ouro do cinema com a música Smile, de Charles Chaplin, do filme Tempos Modernos.

Fazendo da sua trilha o guia das emoções e das sensações de Coringa, Todd Phillips usa a música como um maestro para conduzir o nível de intensidade da narrativa, nos fazendo ainda ouvir o hit Laughing, de The Guess Who, pela própria e pesada voz de Joaquin Phoenix. Dramático, visceral, voraz e violento, a nova versão do vilão inaugura um novo momento na história da Warner/DC, representando o zeitgeist de maneira brilhante, à medida que abre o caminho para que mais novas adaptações de quadrinhos entrem para o hall de grandes produções da história do cinema. Dilacerado e honesto, Coringa é o filme que o mundo precisa assistir e é o cumprimento de uma antiga promessa feita aos fãs da DC. Preparem-se para o melhor filme de 2019.

 

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