O Insustentável Peso Social
Coringa, filme escrito e dirigido por Todd Phillips, já quebra paradigmas em sua concepção – muito antes de analisarmos o produto pronto. Primeiro, por ser um filme da empresa (Warner/DC) a ter como foco pleno o antagonista e não o herói – o estúdio já havia tentado com Esquadrão Suicida (2016), mas a abordagem equivocada transformava os vilões em mocinhos (ou no máximo anti-heróis). Filmes de super-heróis parecem todos iguais, mas nos bastidores temos empresas/estúdios diferentes, e suas propriedades milionárias distintas. E segundo, por ser um filme de censura máxima com potencial imenso de abrangência. Ou seja, da largada Coringa já era um projeto único.
O caminho correto do roteiro de Todd Phillips, egresso de comédias incorretas (também de censura alta), foi desenvolver o protagonista a ponto de humanizá-lo. E aqui vemos o personagem como nunca anteriormente. Sua história de sofrimento é digna das mais clássicas tragédias da dramaturgia. A acessibilidade e a identificação são os artifícios que criam os grandes personagens, mesmo que eles sigam por caminhos tão tortuosos que percam grande parte de sua humanidade. Aqui, o Coringa não é um vilão no sentido mais literal da palavra, pelo contrário, termos como “vítima” e “doente” seriam mais corretos para descrevê-lo.
Na trama, Arthur Fleck é um cidadão de classe baixa vivendo em Gotham City. Ele se vira como pode em bicos como palhaço, sobrevivendo basicamente para cuidar da mãe inválida. Seu sonho é se tornar um comediante de sucesso. Sofrendo humilhações diárias, desde ser espancado nas ruas, até ser constantemente destratado pelo patrão e colegas de trabalho, Fleck é uma panela de pressão prestes a explodir num mundo desigual e violento.
Coringa tem fortes semelhanças com o cinema autoral de Martin Scorsese, em especial Taxi Driver (1976), fazendo dos longas complementares e uma dobradinha interessante. Ambos abordam protagonistas disfuncionais tentando se adequar à sociedade, que insiste em repeli-los e os esmagar. Não por coincidência, Scorsese esteve vinculado inicialmente ao projeto como produtor. Até mesmo a ambientação dos filmes parece a mesma – com a Gotham City daqui lembrando muito Nova York da década de 1970.
A ambientação é crucial para nos emergir no clima de desconforto e insatisfação latente– repleta de delinquência, abismos sociais, ruas sujas e transportes públicos precários e largados à própria sorte. Foi através deste descaso que o prefeito Rudolph Giuliani se ergueu, prometeu limpar Nova York, e cumpriu, entregando uma cidade nova, muito diferente da que conhecemos do cinema na década de 1980. É esta mesma política de tolerância zero que Thomas Wayne (Brett Cullen), candidato ao cargo público no filme, aparece na TV prometendo – terminando castigado pela anarquia gerada pela segregação do “nós contra eles”, o ápice da luta de classes.
Aliás, este é um dos temas fervorosos de Coringa – algo que já havia sido abordado levemente em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012). Aqui, é clara a intenção de “vilanizar” o poder e quem está no comando. Os poderosos são os antagonistas óbvios, sejam as autoridades, políticos, yuppies bêbados no metrô na madrugada (porque nada é mais assustador do que um playboy engravatado alcoolizado), apresentadores de talk shows e magnatas donos da cidade. Estes são os vilões de Coringa, já que o filme é visto através de sua ótica. O personagem Coringa, conhecido anteriormente como o palhaço do crime, se torna a vítima da sociedade, isto é, até ser engolido e transformado pela loucura – deixando vir completamente à tona seu pior lado.
Analogias políticas de lado, Coringa é uma obra-prima devido a inúmeros outros méritos. O principal deles e muito alardeado é a interpretação visceral e mais metódica impossível de Joaquin Phoenix no papel título. O que dizer sobre ele que já não tenha sido dito e sem se tornar repetitivo. Vale mencionar que todo elogio é pouco, e que no momento o ator não possui alguém à altura que possa fazer frente este ano para uma vitória no Oscar 2020 (a indicação não sai se der uma zebra muito grande). Todo o resto surge como coadjuvante de luxo, seja a vizinha interpretada pela carismática Zazie Beetz ou o apresentador de talk show vivido por Robert De Niro – uma clara alusão a outro grande filme de Scorsese (este subestimado e esquecido), O Rei da Comédia (1982).
Coringa é um retrato dolorido de várias síndromes e doenças psicológicas, muito discutidas e sofridas atualmente – numa era de insatisfações diárias em que nossas expectativas (muitas vezes impossíveis de serem alcançadas) são derrubadas por terra constantemente. O longa é um conto cautelar sobre o desajuste social, e o que esta pressão pode acarretar. Não é algo novo, e já foi visto no cinema mainstream diversas vezes, desde Rambo: Programado para Matar (1982), passando por Clube da Luta (1999) e chegando até seu gêmeo, o citado Taxi Driver. Mas aqui, o que presenciamos é uma evolução, é um passo além, de uma discussão mais aprofundada, que precisa estar sempre em pauta e ser debatida. Coringa é triste, melancólico e trágico – sem esquecer a enorme polêmica inerente. Um filme à altura do personagem, que se embrenha fundo em seu âmago. Vocês pediram, agora aguentem. Ele está rindo por último.