Crítica | Corpo e Alma – solidão num matadouro em drama indicado ao Oscar

Estranhos Prazeres

A cada edição do Oscar, nem sempre os filmes selecionados nas inúmeras categorias são as melhores opções. Isso é um fato sabido e muito reclamado por fãs de cinema ao redor do mundo. Nas categorias menores ocorre o mesmo. É o caso na de filme estrangeiro, afinal quem poderia esquecer a derrota do primordial Relatos Selvagens, no Oscar de 2015, para o insosso Ida, por exemplo. Este ano, o ótimo brasileiro Bingo: O Rei das Manhãs ficou de fora, e nem vamos entrar no mérito do arrebatador Em Pedaços, o representante alemão que provavelmente era o melhor do lote (o filme levou o Globo de Ouro este ano).

Seja como for, aqui temos representada a Hungria com Corpo e Alma, drama sobre o relacionamento nada usual entre duas almas perdidas e solitárias. Escrito e dirigido pela cineasta Ildikó Enyedi, o filme apresenta Endre (papel de Géza Morcsányi), um homem de meia idade que trabalha num abatedouro. O sujeito, dono de um braço “falecido”, sem função motora, ocupa um cargo de direção no local, e funciona como a voz da consciência, entre contratações de funcionários e desempenho da equipe.

A trama começa a girar com a chegada de Mária (a bela Alexandra Borbély), nova na empresa, encarregada da qualidade da carne abatida no local. Igualmente adepta da solidão, e muito inadequada socialmente, seu caminho irá cruzar com o de Endre, e os dois irão desenvolver um relacionamento nada convencional.



Fica claro desde o início que um dos tópicos abordados pelo diretor e roteirista é a solidão. O isolamento social pode criar diversas mazelas em nosso psicológico, resultando na completa falta de tato e desenvoltura em público – em todos os sentidos. Mária, por exemplo, não era tocada há anos, e fez disso um escudo. Seu isolamento termina apenas por destaca-la no grupo de funcionários, que logo tratam de aponta-la como quase uma figura non grata em seu meio – a cena na qual uma funcionária vai convidá-la para o café e desiste é prova disso.

Em outro momento, colegas debocham de suas características robóticas. A própria reconhece tal fragilidade e entende que precisa trabalhar em sua deficiência, prontamente atendendo a consultas com um psicólogo, que a incentiva a interagir mais e a tocar, literalmente, outros seres vivos – barreiras que soam simples para a maioria, mas que são gigantescas para muitos.

Outro trecho interessante de Corpo e Alma, um conceito inovador e pouco usado no cinema, é o elemento que o aproxima da fantasia. Mária e Endre não compartilham apenas o desejo mútuo adormecido, mas também um peculiar sonho, noite após noite. Nele, ao redor de um lago congelado em uma floresta, dois cervos interagem e se unem. No sonho, Endre se descobre o macho e Mária, a fêmea, cada um em sua casa, vindo a perceber a anomalia de forma acidental no trabalho. Esta premissa, se melhor trabalhada, num filme abrangente, pode vir a render algo especial.

Corpo e Alma é um drama eficiente, mas seu problema se encontra na narrativa, quase inexistente. A diretora tenta ganhar tempo, como se tentasse encobrir uma deficiência, ao apresentar algo que o espectador já conseguiu perceber a quilômetros de distância. Assim, só nos resta esperar até que o filme acompanhe o público e decida estar à sua frente e não atrás.

A sensação aqui é a de dar voltas ao redor do próprio rabo, testando um pouco a paciência do público, não pela contemplação de qualquer momento, mas pela falta dela. Apesar disso, as propostas são plantadas de forma real, e as atuações, em especial de Borbély, são honestas e críveis. O relacionamento, o cerne da obra, funciona – e o roteiro ainda trata de brincar com as expectativas do público, ensaiando um desfecho, e logo depois o subvertendo. E é justamente em seu terceiro ato que Corpo e Alma flui de forma mais consciente, impulsionando o que havia sido repetido (quase que exaustivamente) ao longo de suas quase 2 horas de projeção.

Os de estômago mais fraco, ou que não querem seguir pelo condicionamento vegetariano, estejam avisados que as cenas iniciais de Corpo e Alma, romance passado num abatedouro, realmente faz jus à sua locação e exibe graficamente e detalhadamente o processo (muito cruel) da vaca virar bife, em todas as suas etapas.

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Pablo R. Bazarello
Crítico, cinéfilo dos anos 80, membro da ACCRJ, natural do Rio de Janeiro. Apaixonado por cinema e tudo relacionado aos anos 80 e 90. Cinema é a maior diversão. A arte é o que faz a vida valer a pena. 15 anos na estrada do CinePOP e contando...
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