Transtornos obsessivos, comportamentos compulsivos, complexos e traumas familiares. O que poderia ser uma receita explosiva preocupante, encontra caminho no humor negro que a própria psique humana talvez resguarde em seu íntimo, mas que poucos ousariam se aproximar. Até que Crazy Ex-Girlfriend entra em cena, projetando intensos holofotes nas doenças da alma que poucos querem falar, muitos temem e ninguém acha graça.
E não se trata de fazer piada de assuntos tão sérios como esses. Se trata de uma abordagem hiper realista, que coloca uma lupa tragicômica sobre alguns dos conflitos emocionais e psicológicos mais intensos, oriundos de uma alma fragilidade e um histórico que percorre questões familiares e outras circunstâncias de extrema delicadeza. Esse “holofote” projetado traz à luz a história de Rebecca Bunch, talentosa e extremamente inteligente, mas que passou a vida inteira sendo reduzida por sua mãe e ignorada por seu pai. Sem cuidado familiar e muitos traumas na conta, ela é o relato da ex-namorada maluca, que embora se divirta (e nós também!) maquinando planos para trazer o ex de volta, casar com ele e – porque não – também destruí-lo, mostra suas rachaduras mais profundas, de alguém que em seu exterior é a mais pura autoafirmação, enquanto clama por aceitação no interior.
Mas Crazy Ex-Girlfriend é muito mais que a junção do drama pesado com o saboroso e quase despretensioso humor negro de uma mulher obcecada. Trazendo os coadjuvantes para o centro da loucura da protagonista, testemunhamos um leque variado de pessoas que todas, à sua maneira, estão tentando sobreviver às fragilidades que envolvem quem são. Seja o alcoolismo, a rejeição, a falta de realização familiar e o medo do desconhecido, todos se escondem atrás de uma máscara de normalidade, que se desfaz da forma mais crua e divertida cada vez que uma deliciosa epifania musical se inicia.
Estranhamente, todos só conseguem dizer o que genuinamente pensam quando cantam. Os sentimentos mais íntimos, os segredos mais secretos, os medos mais pavorosos de se admitirem chegam à flor da pele em divertidas e irônicas canções, que remetem a uma sucessão de referências que atravessam as décadas e os estilos musicais. Do synthpop oitentista, passando pela pegada da banda Twisted Sisters, chegando às boybands dos anos 90/2000, fazendo pausas no gospel de igreja e na música emo, todo mundo diz o que sente quando sai de cena e abre espaço para pseudos alter egos com densas reflexões ritmadas em canções originais. Compostas por Rachel Bloom, criadora e protagonista da produção da CW, elas relatam de maneira fantástica e teatral as verdadeiras intenções dos personagens. Quando ninguém sabe o que dizer e como o fazer, a música falar por si só.
A combinação peculiar entre o drama e o humor ataca também alguns formatos enquadrados e paradigmas com os quais nos acostumamos. Abordando desde a quebra dos padrões de beleza ao estilo de vida plástico alimentados nas inúmeras redes sociais, Crazy Ex-Girlfriend brinca com a fachada sustentada pelo meio social contemporâneo, cutucando duramente a necessidade de nos projetarmos como pessoas que nem sempre representam realmente quem somos e como estamos. Com uma protagonista que tem o biotipo fora dos parâmetros e que constantemente ri de si mesma, somos presenteados com uma série totalmente autêntica e identificável – independente do grau de complexidade psicológica. Rebecca Bunch é um pouco de todos nós, em uma escala soberba neurótica e que emana ansiedade por todos os lados.
Com episódios dinâmicos que voam rapidamente diante dos olhos da audiência, Crazy ex-Girlfriend é a série de dramédia que brinca com a obsessão, à medida que – ironicamente – aborda o assunto com propriedade e responsabilidade. Construindo um universo paralelo com o meio musical, a produção foge bem dos padrões da emissora CW, saindo de sua zona de conforto em direção a uma abordagem que une um pouco do pitoresco de Unbreakable Kimmy Schmidt, com a seriedade daqueles relatos passionais doentios que tanto já vimos nos programas do canal Investigação Discovery.