A mitologia acerca dos doppelgängers (ou duplos, ou sósias, como também são conhecidos) data de vários séculos atrás. A terminologia nórdica encara o duplo como uma cópia de uma pessoa que, segundo o dramaturgo Steinberg, insurge como presságio de morte ou de mau agouro. Não é surpresa que as lendas foram incorporadas a diversos filmes de terror e de ficção científica, desconstruindo os conceitos maniqueístas do sobrenatural para um enfrentamento quase moral dos nossos piores medos – ou do nosso pior lado, que nos assombra constantemente. Ao longo da história da literatura e do cinema, essas personas, que são tratadas como alter-egos sombrios de uma psique atribulada, transformaram-se em um sub-gênero recheado de potencial, aparecendo em obras como ‘O Retrato de Dorian Gray’, ‘The Outsider’, ‘How I Met Your Mother’ e, mais recentemente, no aclamado thriller ‘Nós’, de Jordan Peele.
Agora, chegou a vez da Netflix investir nesse tipo de narrativa com a produção italiana ‘Curon’. Com apenas sete episódios, a série é uma ode ao suspense dramático e gira em torno da cidade titular, palco de inúmeras tragédias sempre relacionadas à família Raina. Outrora dona do pitoresco vilarejo que fazia fronteira com a Áustria em plena II Guerra Mundial (quase transformando-se em uma neo-colônia alemã), a família resolveu inundá-la como forma de enterrar segredos obscuros – algo que veio a ser cobrado décadas depois em um enredo épico de ascensão e tragédia. Agora, Anna (Valeria Bilello) resolveu retornar de sua vida na estonteante Milão para Curon, para tentar recuperar o tempo perdido com um pai debilitado (interpretado por Luca Lionello) e um passado traumático que envolve a morte da mãe.
Por mais formulaica que essa atmosfera pareça – ainda mais levando em conta a repetitiva preferência da plataforma de streaming pela sóbria fotografia azulada (típica de produções como ‘Dark’, ‘The Rain’ e ‘The Witcher’ -, o quarteto idealizador deixa que a própria série beba desses convencionalismos narrativos e transfira o foco para um grupo de jovens que lida com uma herança arrepiante, uma maldição que vem se estendendo desde sempre na misteriosa cidade. É a partir daí que o drama adolescente ganha forma interessante e transbordando com energia – a qual é canalizada para atuações irretocáveis e uma tensão crescente que serve de base para sequências de tirar o fôlego. Tudo isso comandando pelos diretores Fabio Mollo e Lyda Patitucci e pela dupla de protagonistas Mauro e Daria, encarnados por Federico Russo e Margherita Morchio.
Arquitetando uma mitologia própria, as sutis nuances são elevadas a um patamar elegíaco – ainda mais levando em conta que o principal vilão da história é a torre do relógio que se posta isolada no centro de um lago. Essa criatura imóvel com ares lovecraftianos é o espectro sobrenatural necessário para que o público comprasse o projeto, além de reger os relacionamentos conturbados entre os personagens. De um lado, os gêmeos Mauro e Daria unem-se para sobreviver ao último ano do colégio, sendo confrontados pela reputação controversa de seus antepassados e por suas personalidades contradizentes à campesina e tradicionalista (para não dizer retrógrada) comunidade lacustre; do outro, temos o conflito sexual de Micki (Juju Di Domenico), a rebeldia sem fim de seu irmão, Giulio (Giulio Brizzi), e ao tóxico relacionamento de seus pais. Ambos os diferentes mundos entram em rota de colisão em inesperados eventos – aumentando a complexidade de cada batida.
À parte de uma imagética bem pensada, mesmo que já tenha sido utilizada em outras produções audiovisuais, e de uma premissa interessante, o grande problema da primeira temporada é sua identidade. Apesar do número sólido de protagonistas, as múltiplas tramas destinadas a cada um deles não têm espaço e tempo suficiente para dizerem tudo o que precisam; algumas escolhas cênicas também parecem fragmentadas demais – como é o caso da montagem paralela, que destoa em certos capítulos quando procura promover um dinamismo maior (coisa que poderia ser destinada apenas à intempestiva trilha sonora). No final das contas, cabe à excelência da química entre os atores e atrizes ofuscar, dentro do que é cabível, esses amadorismos.
Enquanto a série não pensa duas vezes antes de transformar o suspense em um thriller psicológico movido à laços familiares e a segredos que vão sendo desenterrados pouco a pouco, a transmissão mítica ou acaba ficando de lado, ou é inflexionado de modo diligente e superficial. Felizmente, numa perspectiva inicial, a primeira temporada ergue-se com maestria forte o bastante para nos manter vidrados do começo ao fim – ainda que certas incursões oscilem por falta de aproveitamento.
No geral, ‘Curon’ é uma surpresa agradável que vinha sendo cultivada desde o primeiro trailer – um dos melhores do ano, devo dizer. Mesmo que certas expectativas tenham sido diminuídas à medida que os episódios chegavam ao fim, o saldo positivo e o desejo de mais temporadas (com explorações mais profundas do que as apresentadas) é o principal motivo de querermos revisitá-la várias vezes à procura de pistas e pontos perdidos.