segunda-feira , 25 novembro , 2024

Crítica de Álbum | Cheek to Cheek – O incrível duo de Gaga e Bennett

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O jazz surgiu no final do século XIX como um movimento norte-americano de contracultura, emergindo como uma das principais características do crescente empoderamento da cultura negra em Nova Orleans. E bom, se tal entidade artístico-musical primeiro deu-se como uma afronta para o classicismo elitizado, não é nenhuma surpresa que Lady Gaga, após receber duras críticas com seu álbum ARTPOP (o qual foi redescoberto anos depois com um apoio incontestável), tenha migrado bruscamente para essa vertente criativa, aliando-se a um nome muito conhecido e com o qual já havia trabalhado antes: o incrível e talentoso Tony Bennett.

Em 2011, Bennett e Gaga realizaram sua primeira parceria, com a performance de The Lady is a Tramp” em Duets II: The Great Performances. Após o lançamento oficial, à época representando uma versatilidade incrível para a cantora que acabava de sair de sua era de autoaceitação com Born This Way, os críticos ovacionaram de modo nem um pouco premeditado a amálgama onírica de duas vozes tão diferentes – uma mais ríspida e inclinada para o tenor, e outra fincada no contralto coloratura. Três anos depois, o cantor, tendo se filiado de modo quase fraternal à artista, convidou-a para realizar um projeto intitulado Cheek to Cheek, no qual os dois se juntariam para regravar o suprassumo do jazz e do blues em um disco totalmente diferente, modernizado e nostálgico ao mesmo tempo. O resultado não foi apenas uma investida espontânea, mas também uma união feita por mãos divinas.



O álbum inicia-se com o animado e nova-iorquino Anything Goes”, nos transportando para a década de 1930 em uma Manhattan que acabava de sair da I Guerra Mundial e preparava-se para adentrar em mais um conflito bélico. A atmosfera familiar e acolhedora é própria dos pequenos pubs noturnos da metrópole, permitindo que o ouvinte inclusive imagine-se sentado à frente de um balcão amadeirado, enquanto sente o acre cheiro de cigarros e uísque à medida em que o saxofone, o piano e a suave bateria mesclam-se em uma composição emocionante. Espere também ouvir os convencionais e tão aguardados solos instrumentais, conduzidos com tamanha maestria que fica difícil não querer se levantar da cadeira e arriscar alguns passos para acompanhar a fluidez com que os acordes são construídos. Em I Won’t Dance”, essa euforia toma ares similares, mas um pouco mais sutis e agradáveis de ouvir em um momento de calmaria.

lead single homônimo para o título do disco é um de seus incríveis ápices. Orquestrado de forma dúbia, a faixa começa na forma de uma melódica balada romântica, servindo apenas como prólogo para a entrada dos instrumentos próprios do jazz, caminhando gradativa e paralelamente ao crescendo da voz de Gaga e ao poder de manutenção grave de Bennett, cuja fusão adiciona ainda mais complexidade e emoção para o resultado final. É até mesmo possível ouvir as influências contemporâneas do pop nessa música, perscrutadas pela identidade da cantora e que contrastam brilhantemente com o escopo geral do álbum.

Apesar da ambiência alegre, Cheek to Cheek também resgata as incríveis epopeias trágicas que acompanharam a história desse gênero musical, cuja principal ideia era também fornecer uma visão mais humana para o cenário artístico da época ao criar narrativas de sofrimento amoroso, abandono e cessão às drogas e ao álcool como forma de fugir da cruel realidade. Não é surpresa, pois, que mais uma trilogia emerja da colaboração entre Gaga e Bennett, entretanto com seus próprios solos. Ela entrega-se a uma história em que encontra uma ruína iminente e obrigada a abandonar sua felicidade e aceitar a solidão em Lush Life”. “Eu costumava visitar todos os lugares alegres para experimentar a vida”, ela diz na primeira estrofe, realizando uma ode para os bares de jazz frequentados por tristes rostos femininos. A priori, ela sente-se bem, principalmente com a aparição de uma figura estranha e misteriosa, mas que parte com a mesma rapidez que aparece, deixando-a sozinha e com a certeza de que “estava errada de novo”.

Mesmo com a composição esperançosa, ela sempre retorna para seu sofrimento interno. E conforme a bateria dá lugar a um arco basicamente formado por violoncelos e violinos, Gaga mais uma vez se vê nos pubs que outrora frequentava com alegria, terminando a tragédia dizendo que irá aproveitar a vida e apodrecer com as pessoas que também estão sozinhas. Em uma contrapartida irônica, Bennett dá a resposta cândida, não como a figura misteriosa supracitada, mas sim como um espectador que a enxerga platonicamente como uma dama a ser cortejada, mas que carrega um triste semblante em Sophisticated Lady”.

O álbum encerra-se de uma forma catártica. Em uma rendição teatral, Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” configura-se como o segundo solo de Gaga para a totalidade do disco. Usando e abusando de sua tecedura vocal, ela permite-se deslizar através das notas, adornadas com os sons em crescendo do trompete clássico e até mesmo do bumbo, para contar uma das histórias mais intimistas da persona que encarna: um tour de force que a acompanha desde a infância, onde conheceu o amor de sua vida. Não sabemos se esse amor permaneceu no âmbito fraternal ou se ele evolui para algo romântico, mas não é isso o que importa. A real mensagem vem com a chegada do último ato da música, o qual configura-se como a explosão de sentimentos internalizados pela cantora, deixando-se levar pela frustração de ter perdido alguém sem qualquer motivo e que a destruiu. Até mesmo o jogo de palavras com o título da música é extremamente bem pensado, referindo-se tanto à brincadeira de mocinho-bandido, passando pelo assassinato da pessoa que ela amava e como isso a impactou de forma irreversível.

Cheek to Cheek é uma obra para os séculos: uma tragédia, uma comédia, um louvor ao jazz, nostálgico e modernizado, trazendo duas das maiores vozes de todos os tempos em uma combinação emocionante e fluida. Gaga e Bennett transformam música em magia nesse disco – e não podemos deixar de nos sentir saudosistas ao pensar que esse duo talvez tenha feito essa única obra e não volte a trabalhar novamente.

Nota por faixa:

  • Anything Goes – 5/5
  • Cheek to Cheek – 5/5
  • Nature Boy – 4,5/5
  • I Can’t Give You Anything But Love – 4/5
  • I Won’t Dance – 4,5/5
  • Firefly – 4,5/5
  • Lush Life – 5/5
  • Sophisticated Lady – 5/5
  • Let’s Face the Music and Dance – 4/5
  • But Beautiful – 5/5
  • It Don’t Mean a Thing (If It Ain’t Got That Swing) – 4,5/5
  • Bang Bang (My Baby Shot Me Down) – 5/5
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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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O jazz surgiu no final do século XIX como um movimento norte-americano de contracultura, emergindo como uma das principais características do crescente empoderamento da cultura negra em Nova Orleans. E bom, se tal entidade artístico-musical primeiro deu-se como uma afronta para o classicismo elitizado, não é nenhuma surpresa que Lady Gaga, após receber duras críticas com seu álbum ARTPOP (o qual foi redescoberto anos depois com um apoio incontestável), tenha migrado bruscamente para essa vertente criativa, aliando-se a um nome muito conhecido e com o qual já havia trabalhado antes: o incrível e talentoso Tony Bennett.

Em 2011, Bennett e Gaga realizaram sua primeira parceria, com a performance de The Lady is a Tramp” em Duets II: The Great Performances. Após o lançamento oficial, à época representando uma versatilidade incrível para a cantora que acabava de sair de sua era de autoaceitação com Born This Way, os críticos ovacionaram de modo nem um pouco premeditado a amálgama onírica de duas vozes tão diferentes – uma mais ríspida e inclinada para o tenor, e outra fincada no contralto coloratura. Três anos depois, o cantor, tendo se filiado de modo quase fraternal à artista, convidou-a para realizar um projeto intitulado Cheek to Cheek, no qual os dois se juntariam para regravar o suprassumo do jazz e do blues em um disco totalmente diferente, modernizado e nostálgico ao mesmo tempo. O resultado não foi apenas uma investida espontânea, mas também uma união feita por mãos divinas.

O álbum inicia-se com o animado e nova-iorquino Anything Goes”, nos transportando para a década de 1930 em uma Manhattan que acabava de sair da I Guerra Mundial e preparava-se para adentrar em mais um conflito bélico. A atmosfera familiar e acolhedora é própria dos pequenos pubs noturnos da metrópole, permitindo que o ouvinte inclusive imagine-se sentado à frente de um balcão amadeirado, enquanto sente o acre cheiro de cigarros e uísque à medida em que o saxofone, o piano e a suave bateria mesclam-se em uma composição emocionante. Espere também ouvir os convencionais e tão aguardados solos instrumentais, conduzidos com tamanha maestria que fica difícil não querer se levantar da cadeira e arriscar alguns passos para acompanhar a fluidez com que os acordes são construídos. Em I Won’t Dance”, essa euforia toma ares similares, mas um pouco mais sutis e agradáveis de ouvir em um momento de calmaria.

lead single homônimo para o título do disco é um de seus incríveis ápices. Orquestrado de forma dúbia, a faixa começa na forma de uma melódica balada romântica, servindo apenas como prólogo para a entrada dos instrumentos próprios do jazz, caminhando gradativa e paralelamente ao crescendo da voz de Gaga e ao poder de manutenção grave de Bennett, cuja fusão adiciona ainda mais complexidade e emoção para o resultado final. É até mesmo possível ouvir as influências contemporâneas do pop nessa música, perscrutadas pela identidade da cantora e que contrastam brilhantemente com o escopo geral do álbum.

Apesar da ambiência alegre, Cheek to Cheek também resgata as incríveis epopeias trágicas que acompanharam a história desse gênero musical, cuja principal ideia era também fornecer uma visão mais humana para o cenário artístico da época ao criar narrativas de sofrimento amoroso, abandono e cessão às drogas e ao álcool como forma de fugir da cruel realidade. Não é surpresa, pois, que mais uma trilogia emerja da colaboração entre Gaga e Bennett, entretanto com seus próprios solos. Ela entrega-se a uma história em que encontra uma ruína iminente e obrigada a abandonar sua felicidade e aceitar a solidão em Lush Life”. “Eu costumava visitar todos os lugares alegres para experimentar a vida”, ela diz na primeira estrofe, realizando uma ode para os bares de jazz frequentados por tristes rostos femininos. A priori, ela sente-se bem, principalmente com a aparição de uma figura estranha e misteriosa, mas que parte com a mesma rapidez que aparece, deixando-a sozinha e com a certeza de que “estava errada de novo”.

Mesmo com a composição esperançosa, ela sempre retorna para seu sofrimento interno. E conforme a bateria dá lugar a um arco basicamente formado por violoncelos e violinos, Gaga mais uma vez se vê nos pubs que outrora frequentava com alegria, terminando a tragédia dizendo que irá aproveitar a vida e apodrecer com as pessoas que também estão sozinhas. Em uma contrapartida irônica, Bennett dá a resposta cândida, não como a figura misteriosa supracitada, mas sim como um espectador que a enxerga platonicamente como uma dama a ser cortejada, mas que carrega um triste semblante em Sophisticated Lady”.

O álbum encerra-se de uma forma catártica. Em uma rendição teatral, Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” configura-se como o segundo solo de Gaga para a totalidade do disco. Usando e abusando de sua tecedura vocal, ela permite-se deslizar através das notas, adornadas com os sons em crescendo do trompete clássico e até mesmo do bumbo, para contar uma das histórias mais intimistas da persona que encarna: um tour de force que a acompanha desde a infância, onde conheceu o amor de sua vida. Não sabemos se esse amor permaneceu no âmbito fraternal ou se ele evolui para algo romântico, mas não é isso o que importa. A real mensagem vem com a chegada do último ato da música, o qual configura-se como a explosão de sentimentos internalizados pela cantora, deixando-se levar pela frustração de ter perdido alguém sem qualquer motivo e que a destruiu. Até mesmo o jogo de palavras com o título da música é extremamente bem pensado, referindo-se tanto à brincadeira de mocinho-bandido, passando pelo assassinato da pessoa que ela amava e como isso a impactou de forma irreversível.

Cheek to Cheek é uma obra para os séculos: uma tragédia, uma comédia, um louvor ao jazz, nostálgico e modernizado, trazendo duas das maiores vozes de todos os tempos em uma combinação emocionante e fluida. Gaga e Bennett transformam música em magia nesse disco – e não podemos deixar de nos sentir saudosistas ao pensar que esse duo talvez tenha feito essa única obra e não volte a trabalhar novamente.

Nota por faixa:

  • Anything Goes – 5/5
  • Cheek to Cheek – 5/5
  • Nature Boy – 4,5/5
  • I Can’t Give You Anything But Love – 4/5
  • I Won’t Dance – 4,5/5
  • Firefly – 4,5/5
  • Lush Life – 5/5
  • Sophisticated Lady – 5/5
  • Let’s Face the Music and Dance – 4/5
  • But Beautiful – 5/5
  • It Don’t Mean a Thing (If It Ain’t Got That Swing) – 4,5/5
  • Bang Bang (My Baby Shot Me Down) – 5/5
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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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